No dia 6 de Novembro, nasceu um português. Não se conhece o seu nome.
Este português nasceu da forma mais indigna que se possa imaginar: na rua, apenas com a presença da sua jovem mãe. Do que se conhece, neste parto, ninguém ajudou e nenhum cuidado médico foi prestado Poucos minutos depois de nascer, esta criança foi colocada, pela sua mãe, no caixote do lixo mais próximo do local do seu nascimento. Completamente nua, com o cordão umbilical ainda ligado a si, ensanguentada com o sangue da sua mãe, respirando a custo e suportando, no seu frágil corpo, o frio de uma noite de Novembro, esta criança ia morrer. Morreria de frio, de abandono e de desumanidade. Mas, não foi isso que aconteceu.
Um outro português, adulto, sem-abrigo, que vive nas ruas e que eventualmente circula, frequentemente, pelos espaços dos contentores, escutou esta pequena criança a lutar pela sua frágil vida, no meio do lixo, e salvou-a, no último momento.
Durante dois dias, a comunicação social destacou este caso, descrevendo-o, pormenorizadamente, identificando o salvador da criança, acompanhando a visita do Presidente da República ao contentor e divulgando o abraço, emocionado, deste ao concidadão sem-abrigo. Faltava, ainda, para completar a história mediática e o processo policial, conhecer a/o responsável pelo abandono daquele pequeno português. No dia 8 de Novembro, a Polícia Judiciária concluiu o seu trabalho – como sempre acontece – e uma jovem sem-abrigo, residente numa pequena tenda, armada numa das ruas de Lisboa, é identificada como a mãe da criança e eventual responsável pelo seu abandono no contentor do lixo. Essa mãe é entregue ao cuidado de um tribunal que, após concretizar os procedimentos formais necessários e aplicar a lei, a colocou, preventivamente, numa prisão.
No momento em que escrevo estas palavras (primeiras horas do dia 9 de Novembro), a criança está fora de perigo e, provavelmente, será encaminhada para uma instituição social. A sua mãe encontra-se presa, aguardando o, consequente, julgamento. O Presidente da República deslocou-se ao local da notícia e agradeceu, em nome do país e com um abraço, o gesto de humanidade do sem-abrigo que fez o salvamento. Nos jornais, foram divulgadas as fotos que os técnicos do INEM fizeram do bebé, aquando do seu transporte para o Hospital. O assunto estará encerrado, a lei terá sido cumprida, as instituições terão funcionado e a vida terá voltado ao normal.
No entanto, o assunto não de pode simplesmente encerrar, pelo facto de tudo estar errado!
Miséria humana e publicidade são realidades incompatíveis.
É inaceitável que continuem a existir portugueses que vivem na rua, dormindo em tendas, em camas de cartão, em portadas de prédios, envoltos em mantas sujas, nas ruas em que circulamos diariamente e onde os ignoramos. O país tem riqueza suficiente para investir uma pequena parte na garantia, a estes concidadãos, de um teto, uma cama, uma casa de banho e três refeições diárias. Não o fazemos porque não queremos. O Presidente da República bem fala desta questão, mas ninguém o escuta.
É incompreensível a forma como uma jovem mãe possa esconder uma gravidez dos serviços públicos de apoio social e de saúde ou das instituições de solidariedade que apoiam estes concidadãos que vivem nas ruas. Esta jovem vivia na rua e estaria referenciada por estes serviços. Só se consegue esconder esta gravidez porque ninguém quis, verdadeiramente, saber da real circunstância de vida desta jovem.
A prisão preventiva desta mãe poderá resultar do escrupuloso cumprimento da lei, mas é uma decisão, provavelmente, contrária ao único interesse que deveria prevalecer em todo este processo: o interesse de uma criança que necessita de uma mãe e a necessidade de uma mãe que carece de muita ajuda.
Faltou, em toda esta história e desde o início, um outro país:
(i) um país onde as pessoas em dificuldades não vivam nas ruas e sejam acompanhadas por sistemas públicos de saúde e de solidariedade social que lhes garantam uma vida minimamente digna. Num país decente, uma gravidez nunca terminaria com um bebé num caixote do lixo;
(ii) um país onde as situações de miséria humana não fossem objeto de exploração mediática, mas convocassem uma resposta imediata, humana, eficaz e discreta, dos serviços públicos com responsabilidades na área. Miséria humana e publicidade são realidades incompatíveis;
(iii) um país em que as instituições públicas trabalhassem articuladamente. Uma mãe presa pode cumprir a pena correspondente ao crime que cometeu, mas poderá nunca mais ter uma segunda oportunidade de voltar a ser mãe do seu filho;
Este pequeno português sobreviverá, felizmente. A sua vida ficará a dever-se a um gesto de profunda humanidade de alguém a quem este país, também, virou as costas. O país comoveu-se com esta tragédia do dia 6 de Novembro. No entanto, hoje, nas tendas continuam a viver as mesmas pessoas, o salvador do bebé mantém a sua vida difícil, a mãe está presa e a criança estará entregue a uma qualquer instituição, que dela cuidará até à inevitável adoção.
Tudo normal, mas, infelizmente, tudo errado!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.