Não, nada está garantido, caro burguês!

Num mundo mais incerto, a graça a pedir é uma fé mais adulta, não a ilusão de que “vai ficar tudo bem” aqui, agora e sempre.

Uma das primeiras coisas que mais impressão me causou, chegado a Israel em Setembro de 2016, foi a quantidade de armas. Não em absoluto, mas a quantidade de armas que via e vejo a cada momento e nos sítios mais improváveis. Em Portugal, raramente se vê (mesmo!) uma arma. Quem tem familiares ou amigos caçadores talvez tenha um convívio mais próximo, mas, no meu caso, só mesmo as armas de polícias e outros agentes de autoridade e essas estão quase sempre bem “embrulhadas”: o coldre deixa antever a pistola, mas pouco mais. Aqui em Jerusalém, já me habituei a ver armas automáticas e já pouco ou nada estranho: é normal ver estudantes armados na universidade (não muitos, mas alguns!) e ninguém se encolhe se algum colega de turma, ainda a cumprir serviço militar, traz a espingarda automática e a deposita debaixo da cadeira enquanto assiste à aula.

Sem entrar em comparações sem sentido ou em moralismos fáceis, dou-me conta que vivo num contexto onde a violência não é só uma ideia vaga, onde a guerra não é um horizonte distante e quase negligenciável, onde o dia-a-dia é marcado, ainda que subtilmente, por estes sinais de que nada está garantido, de que o caos, a barbárie, o conflito podem ganhar a partida, irromper sem aviso num dia igual a outros mil.

Nestas semanas de Páscoa até ao dia de Pentecostes, escutamos diariamente na missa um trecho dos Atos dos Apóstolos, um livro que nos conta as lutas e as glórias da Igreja primitiva. Nem tudo são rosas, como sabemos, mas o tom inspira-nos confiança e até as histórias mais lúgubres, como o martírio de Estêvão ou a prisão dos Apóstolos, de Pedro e de Paulo, adquirem uma espécie de suavidade heroica, que absorve as cores carregadas da crueldade e do sofrimento.

O mundo no qual os primeiros cristãos se moviam – na prática, o mundo antigo em geral – era mais visceral nas suas expressões e hábitos e a crueldade, a violência, o sofrimento, a miséria, a morte tinham uma visibilidade que se tornou quase impossível de imaginar no Ocidente no século XXI.

Este ano, mais por coincidência que por desígnio, estou a ler o mais recente romance de Christos Tsiolkas, intitulado Damasco. O livro é a milésima ficção sobre a fascinante vida do apóstolo Paulo e não tem a pretensão de revelar nenhum segredo escondido ou ocultado pela Igreja há dois mil anos atrás. Inspirado pelos textos bíblicos, o autor australiano traça um retrato muito pessoal da vida e da figura de Paulo e do mundo dos primeiros cristãos. Somos transportados entre as várias cidades (Jerusalém, Filipos, Roma, Éfeso, etc.) onde Paulo e os seus discípulos e seguidores vivem, trabalham e procuram entender, celebrar e propagar a mensagem de Cristo, cuja vinda em glória esperam ardentemente.

Nada disto é novo, mas Christos Tsiolkas tem a arte de emprestar realismo às histórias que nos habituámos a ler ou a escutar com uma certa bonomia burguesa. O mundo no qual os primeiros cristãos se moviam – na prática, o mundo antigo em geral – era mais visceral nas suas expressões e hábitos e a crueldade, a violência, o sofrimento, a miséria, a morte tinham uma visibilidade que se tornou quase impossível de imaginar no Ocidente no século XXI.

Os primeiros cristãos, como nos lembra Tsiolkas, eram uma verdadeira aberração num mundo onde classes, privilégios, hierarquias comandavam prémios e castigos, o possível e o inevitável.

É aqui, neste mundo “sem arestas polidas”, onde o poder se exerce brutalmente, e a maioria vive à sombra da fome, da guerra, da arbitrariedade do patrão ou do senhor, que a fé num crucificado, num homem humilhado com a mais ignóbil das mortes, se torna princípio de uma esperança sem tréguas e de uma caridade atrevida. Os primeiros cristãos, como nos lembra Tsiolkas, eram uma verdadeira aberração num mundo onde classes, privilégios, hierarquias comandavam prémios e castigos, o possível e o inevitável.

Talvez nunca nas nossas vidas nos tenhamos sentido tão frágeis, como sociedade e como indivíduos. Talvez experimentemos agora como o “adquirido” não o é ou pode deixar de o ser sem aviso. E, por isso, talvez nunca como agora estejamos preparados para entender a impossibilidade da fé, a sua quase intolerável grandeza. Num mundo “menos confortável”, acreditar num Deus pregado a uma cruz é um grito de louco, é um gesto irrazoável. O cristianismo não oferece garantias, nem nos prepara “um lugar ao sol”. A esperança que nasce da cruz e da ressurreição é uma força dos fracos, um poder sem meios. Há 2000 anos, como hoje, escolher Cristo é entrar num mistério de confiança que vence o mundo e a sua brutalidade sem abraçar ilusões em relação ao presente e ao abismo do mal. A excentricidade da fé não é estratégia comercial, não o foi para os primeiros cristãos e não o é no século XXI: carregaremos sempre vasos de barro num mundo de aço.

 

Fotografia de Annie Spratt – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.