«Morra somente em mim o que já é da morte» – Da Páscoa do P. Armindo à nossa Páscoa

Diante do meu ativismo de jovem padre, ele ria-se e lembrava-me muitas vezes que «a Ericeira demora mais de três dias a atravessar» e que «não é uma questão de força, mas de jeito».

«Quero desejar a todos os meus amigos que tanto me procuraram hoje, como verifiquei nas estatísticas, uma contagiante alegria da Páscoa. Os discípulos ficaram esfuziantes e as mulheres receberam a missão ‘ide dizer a meus irmãos que partam para a Galileia. Lá me vereis’. Páscoa é vida nova». (Da homilia pascal do padre Armindo, de 3 de Abril 2010)

Começo este texto com um trecho de uma homilia pascal do P. Armindo Marques Garcia (1941-2021). Muitos não o terão conhecido, mas tantos outros se cruzaram com o P. Armindo nos seus 55 anos de vida sacerdotal, discretamente vivida ao serviço nos liceus de Lisboa, na diocese de Beja, nos Seminários dos Olivais e de S. José de Caparide e nas paróquias de Rio de Mouro, Estoril e, mais recentemente, da Ericeira e Carvoeira.

No princípio desta Quaresma, no dia 26 de fevereiro, o padre Armindo deixou-nos inesperadamente e partiu para o Céu, para a presença de Deus, em Quem ele pôs a sua confiança e de Quem esperava receber mais vida nova. A vida eterna.

Recordo agora, como um filme, a sucessão de acontecimentos desse dia: a nossa breve conversa ao telefone ainda nessa manhã, duas horas antes; a chamada da irmã do P. Armindo a dar-me a notícia da sua morte; as lágrimas nos olhos; a oração rápida na igreja, a corrida até à Santa Casa da Misericórdia da Ericeira, a oração mais calma e grata ao pé do P. Armindo, a pressa serena em vesti-lo com a sua alva, cíngulo, estola e casula como sacerdote preparado para celebrar a Missa, a conversa com o Cardeal-Patriarca, a mensagem enviada aos padres e amigos e às comunidades paroquiais, a preparação da igreja para o seu velório.

Já tinha conversado várias vezes com o P. Armindo sobre o mistério da morte. Desde 2016, quando fui ordenado padre e enviado para a Ericeira e Carvoeira como seu coadjutor, imaginava que um dia nos teríamos de despedir. E o P. Armindo pressentia-o também. Estes últimos anos da sua vida na terra foram uma graça enorme para mim, que o tive como Mestre na missão de sacerdote. Com ele aprendi a ser padre e com ele também aprendi a morrer. Em certo sentido cristão, são sinónimos. E estou tão grato!

Estes últimos anos da sua vida na terra foram uma graça enorme para mim, que o tive como Mestre na missão de sacerdote. Com ele aprendi a ser padre e com ele também aprendi a morrer. Em certo sentido cristão, são sinónimos. E estou tão grato!

No final do dia 26 de fevereiro e nas semanas seguintes, comecei a ler os textos do P. Armindo, recolhidos no livro «Fragmentos de uma única boa nova» (editado pela Editora Mar de Letras em 2011). Neste autêntico tesouro (fonte destas citações da homilia pascal), ele partilha reflexões cheias da bondade de Deus, a partir de várias circunstâncias quotidianas contempladas à luz da fé e do Espírito. Como mestre de espiritualidade, o P. Armindo recordava que este Espírito, que tantas vezes procuramos, está bem vivo e manifesto nas coisas simples da terra e do mar que nos apontam para o Alto e para a Alegria.

Tenho presente ainda tantas conversas e lições. O P. Armindo dizia-me com naturalidade «estou velhinho» quando eu lhe perguntava «como está?» e chamava-me com boa disposição, ora «patrãozinho», ora «betinho», ora «reverendo padre». Sempre me pedia «novidades?» e queria estar bem informado das notícias da paróquia ou da atualidade, com o seu ipad à mão para rezar ou ler. Diante do meu ativismo de jovem padre, ele ria-se e lembrava-me muitas vezes que «a Ericeira demora mais de três dias a atravessar» e que «não é uma questão de força, mas de jeito» para me mostrar o caminho fundamental da oração que envolve toda a pastoral. Ele gostava de «passear o sacramento», como chamava às suas visitas diárias pelas ruas da Ericeira, onde ia conversando com todos, dos pescadores aos «engenheiros das Ribas», mais novos ou mais velhos. Depois de partilharmos a casa paroquial durante dois anos, o P. Armindo morava já na Santa Casa da Misericórdia da Ericeira desde o final de 2018, sendo aí capelão e uma presença muito importante e tranquilizadora junto dos colaboradores e de todos os residentes neste tempo difícil de pandemia. Gostava de viver e estava com grandes planos para a festa dos seus 80 anos.

«Se a vida é marcada por tantos enganos e ilusões, se a verdade ainda não nos libertou, por graça do Ressuscitado estamos destinados a nascer de novo. Habituados ao velho, resistimos à proposta oferecida pelo mistério pascal de Jesus. Como dizia o poeta cristão, Sebastião da Gama, ‘morra em mim o que já é da morte’». (Da homilia pascal do P. Armindo, de 3 de abril 2010)

Nas vezes em que falámos sobre a morte, o P. Armindo mostrava-se em paz. Como sacerdote que agia «in persona Christi», ele acreditava que «viver é Cristo e morrer é lucro» (cf. Fil 1,21). Ele apreciava as meditações do Papa Paulo VI sobre a proximidade da morte e dizia muitas vezes que esta etapa da velhice era ocasião para «fazer as pazes com a vida» e «aprender a contar os dias» (Salmo 90). Dizia-me que queria ficar sepultado aqui na Ericeira, que ele tanto amou, e pedia que se proclamasse o Evangelho «do grão de trigo», lançado à terra para morrer e dar assim muito fruto, como Jesus. Há uns meses atrás, consciente da sua partida mais próxima, ligou-me: «Senhor padre, era só para dizer que agora é a sua vez. Está bem? Agora, é a sua vez!». A passagem de testemunho foi gradual e natural ao longo destes anos de convivência e comove-me a confiança, o desapego e a humildade com que me deixou continuar a sua missão, a mesma missão de Jesus e da Igreja.

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P. Armindo

Na hora da sua morte, procurei cumprir a sua vontade. Foi uma experiência feliz da Páscoa antecipada, com muitos paroquianos e padres e amigos a despedirem-se dele no velório breve na igreja de S. Pedro, ou acompanhando a Missa online ou depois a oração já no cemitério.

Duas semanas após a sua morte, quisemos celebrar os seus 80 anos numa festa online unindo várias comunidades por onde o P. Armindo deixou rasto, com luz e sinos a tocar, uma oração contemplando os cinco mistérios da sua vida, recolha de testemunhos, música e um jogo.

Nem todos terão compreendido o alcance dessa festa. O sentido da festa está nestas palavras que o P. Armindo citou de Sebastião da Gama: «Morra somente em mim o que já é da morte» (poema «Cristo», Campo Aberto). E S. Paulo, na Carta aos Romanos, torna mais clara a nossa esperança cristã: «o homem velho que havia em nós foi crucificado com Ele, para que fosse destruído o corpo pertencente ao pecado; e assim não somos mais escravos do pecado. É que quem está morto está justificado do pecado. Mas, se morremos com Cristo, acreditamos que também com Ele viveremos» (Rom 6,6-8).

Da Páscoa da Ressurreição de Jesus, que celebramos nesta semana maior, vem a certeza, dada pela fé: o P. Armindo está vivo e festeja com Ele e connosco no Céu. E a sua vida na terra, ao serviço de todos pela fé, merece e precisa de ser celebrada e agradecida como um dom de Deus para todos nós. Comemorar os seus oitenta anos é proclamar o anúncio da vitória pascal de Jesus. O Amor de Cristo é mais forte do que a morte e o pecado!

Durante o tríduo pascal, vi-me a fazer o ato de fé como S. Paulo: «O Filho de Deus amou-me e entregou-se por mim.» Também contemplei a cruz como sinal de uma total generosidade com que Deus quer alavancar o mundo e no meu olhar mais próximo vejo a Ericeira (…) Santa Páscoa.» (Da homilia pascal do padre Armindo, de 3 de Abril 2010)

Do Céu, o padre Armindo continua a ver a Ericeira. E tenho uma secreta esperança que, quando um padre chega ao céu, vêm dez novos padres como reforços para a terra!

Obrigado, P. Armindo!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.