Quando me convidaram para colaborar no Ponto SJ foi-me pedido que escrevesse uma pequena nota biográfica. Não tenho qualquer problema com este exercício — antes pelo contrário, tenho brio em arrumar o armário das minhas facetas, conforto em vestir os papéis que preencho, e chego a sentir vaidade nas capas que envergo. Talvez seja também uma das aflições crónicas da minha geração — viver mais preocupada em fazer do que em ser (mas este tema, prometo, deixo-o para outra crónica). O que me exaspera é encalhar sempre que me tento situar politicamente. Quem me conhece há mais tempo dirá que sou de esquerda, porque sou assumidamente feminista e é crença popular que as preocupações sociais (só) são assumidas neste lado da bancada. Mas será?
Se por um lado a incerteza do período em que vivemos me faz abrigar no porto seguro dos valores tradicionais, fui educada e eduquei-me para ter uma visão universalista, que me leva a ser aliada com as lutas de todos — principalmente com aquelas que não conheço na pele. Se por um lado fui criada numa família conservadora, foi também com e em confronto com ela que aprendi o valor da liberdade. Se enquanto Mãe quero transmitir alicerces morais fortes que ofereçam estabilidade e segurança na educação da minha filha, enquanto jovem tenho total empatia com os desassossegos de quem como eu não acabou de crescer, e de quem toma opções de vida diferentes das minhas. Se por um lado sei que a nudez não é obscena, por outro orbito para os valores da modéstia e do pudor (deve ser da idade!).
Vendo o ativismo verde da geração abaixo, tenho vergonha por não ser ecologista o suficiente; mas sei também que a única sustentabilidade que nos serve é aquela que preserva a dignidade da pessoa humana.
Se por um lado a minha curta experiência de vida já me mergulhou numa segunda crise global, o que me leva a exigir regulação e intervenção nos mercados e na economia, por outro lado a minha veia empreendedora desespera por laissez-faire e desregulação. Enquanto profissional e prestadora de serviços não deixo de me sentir agrilhoada por um sistema fiscal opressivo que tanto tira sem dar “nada” em troca, mas sei que é fácil interpretá-lo desta forma com os meus óculos grossos de privilégio.
Como a maior parte dos meus congéneres, sou profundamente europeísta e assumidamente a favor da globalização. Mas nesta pletora de identidades reconheço a importância de não se deixarem perder as tradições do nosso país — até porque encontramos no slow living do interior respostas acertadas para os problemas de uma economia voraz.
Vendo o ativismo verde da geração abaixo, tenho vergonha por não ser ecologista o suficiente; mas sei também que a única sustentabilidade que nos serve é aquela que preserva a dignidade da pessoa humana. Enquanto crente, se por um lado me refugio nas certezas da minha fé, enquanto cidadã do mundo sou inevitavelmente puxada para algum relativismo moral.
Vivo assim, nem sim nem sopas, nesta fronteira ténue, mas tão afiada, entre o liberal e o conservador, tanto em temas sociais como económicos. Parece que os média nos exigem uma resposta: és de esquerda, ou de direita? E no panorama político nacional? Decide-te! De que partido és, afinal? Boa millennial que sou, estes problemas de primeiro Mundo dilaceram-me. No meio da confusão, escolho por vezes afastar-me e torno-me apática para evitar um mal percebido como maior: ser totalmente incongruente.
Entro em contradições? Talvez um pouco, na medida em que a hierarquia dos valores a proteger exige, inevitavelmente, concessões e acertos. Mas acima de tudo as categorizações do passado — ser de esquerda ou de direita, do partido a, b, ou c, — lamento, não me servem. Acima de tudo, gostava que na política se tivesse bom senso, e que na praça pública a discussão tivesse por base dados objetivos e evidência científica quando o tema o requer. De resto, enquanto que nas questões sociais o valor da vida e a dignidade de todas as pessoas tem necessariamente de ser defendida, (em que termos se o deve fazer,… passo a batata ao próximo), do lado da política económica defendo que se tomem opções adaptadas à medida dos tempos: um setor público mais presente em momentos de crise, que nunca deixe na mão aqueles de nós que são mais frágeis, mas um Estado que dê espaço aos cidadãos de se organizarem como quiserem.
Entro em contradições? Talvez um pouco, na medida em que a hierarquia dos valores a proteger exige, inevitavelmente, concessões e acertos.
Acredito que no meio de todas estas etiquetas há muito mais aquilo que nos une do que aquilo que nos separa, especialmente na nossa geração. Por vezes é o discurso inflamado de vozes do passado que nos tenta separar, ou mesmo de quem no poder pretende com essa divisão ver concretizada a sua agenda própria. Culpo até a curadoria insidiosa dos algoritmos!
Ainda que as metodologias divirjam, ainda que os livros que leiamos sejam por vezes diferentes, penso que os objetivos políticos para as próximas décadas são partilhados: uma sociedade mais justa e igualitária, solidária e empática, onde todos possamos viver livres sendo quem somos, em paz e com segurança, com respeito pelas nossas histórias e identidade, com iguais oportunidades, com liberdade para fazermos os nossos caminhos na prossecução de um Mundo melhor, um que respeite o ambiente e as pessoas. Admito que as formas de lá chegar sejam diferentes, e que as soluções encontradas deem prioridade a um e a outro quadrante. Nada disso me inquieta, antes pelo contrário: há força na diversidade.
Mais para mim do que para vós, faço o repto de que não nos deixemos consumir pelo ruído das nossas próprias incertezas. O espaço público e político é nosso para ocupar, inteiros, tal como somos: carregados de dúvidas e paradoxos. Questionemos, discutamos. Levantemo-nos, (não) saiamos de casa; continuemos a ouvir e a participar. Que tenhamos voz em todas as decisões.
Fotografia de Casey Horner Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.