Aproximava-se o Advento e Margarida não identificava mágoas, erros nem agitações no coração mas não acreditou que fosse esse o seu estado. Decidiu manter-se atenta. Queria preparar o seu coração para que Jesus quisesse nascer ali. Dias depois, apercebeu-se de um certo peso no coração mas não conseguiu identificar de que se tratava. Entregou nas mãos de Deus dizendo-Lhe que tinha mais um trabalho para Ele: “Mostra-me o que é que se passa aqui, meu Pai, porque eu, bem o sabemos, hei de me distrair.”
Margarida já sabia o que a esperava naquelas semanas até ao Natal: as compras – que gostava de fazer bem feitas, escolhendo o presente certo para cada pessoa —, os preparativos para as festas, as constantes exigências da carreira, os programas de sempre com a família, o cuidado da casa, os inevitáveis imprevistos do dia a dia… Temia deixar o tempo passar sem ir à profundidade que o seu coração precisava. Bendisse o trânsito que lhe permitia refletir um pouco sobre o que queria para o seu Advento. Chegar ao Natal sem passar o coração a limpo não era uma opção para ela. “Ai meu Deus!”, exclamou interiormente. “Tens de ser Tu, eu não consigo nada sozinha. Mostra-me, meu Pai, o que se passa aqui.”
Rezar mais
Sempre que se sentia incapaz de prosseguir no que quer que fosse, deixava nas mãos de Deus e concentrava os seus esforços em permanecer atenta. As suas orações eram muitas vezes assim, espontâneas a ponto de parecer que falava com um amigo, alguém igual a si.
Resolveu que, uma vez por semana, antes de ir para casa, visitaria Jesus no Sacrário. Assim fez na primeira semana. No seu caminho havia uma igreja que estava sempre aberta. Entrou, sentou-se, rezou algumas fórmulas e procurou silenciar, despejar o que trazia dentro. Aos poucos, o jantar, as horas a que chegaria a casa e os quid pro quos daquele dia, foram perdendo espaço. Fixava os olhos no Sacrário, certa de que Jesus estava ali. Ainda faltava bastante tempo para a Missa por isso havia muito pouco barulho. Sentiu-se sonolenta. Não seria a primeira vez que dormitava numa ocasião como aquela, mas preferiu manter-se atenta. Mudou de posição e pegou no terço. Já tinha rezado o “do dia” mas ofereceu mais uma dezena.
O peso
Deixou-se ficar ali quieta, calada e lembrou-se de uma história que terminava com “eu fico ali a olhar para Ele, Ele fica ali a olhar para mim”. Era sobre um santo, não se lembrava qual, que assim respondera quando lhe perguntaram o que ele fazia durante tanto tempo, todos os dias, diante do Sacrário. E sorriu. Acreditava naquilo, acreditava que Jesus estava ali e que a sua visita não Lhe era indiferente. Passados uns minutos seguiu o caminho para casa. Tinha deixado o jantar bastante adiantado e por isso aquela visita ao Sacrário não a atrapalhou em nada. Quando se foi deitar, percebeu que estava muito irritada com um familiar próximo. Estava mesmo magoada, com raiva, não conseguia perceber determinada atitude. Lá estava o peso. E reconheceu que andava a fugir daquele desentendimento a ponto de nem se lembrar dele quando resolveu examinar o coração para o Advento. “Ai meu Deus! Não sei se consigo ultrapassar isto!”
Ai meu Deus!
O marido sentiu-a tensa. “O que é que tens?” “Nada! Estou ótima!” Ele sabia que, quando a resposta era aquela, mais valia deixar passar uns dias e não insistiu no assunto. Viram uma série e foram-se deitar. Margarida chegou à cama, fechou os olhos e sentiu-se feliz por poder não tocar naquele peso. Ou naquela dor, melhor dizendo. Fez uma oração das suas: “Deus meu, deixa-me dormir bem, olha por mim. Amanhã eu volto a pensar nisto, deixa-me descansar porque vou ter um dia daqueles”. E, rapidamente, adormeceu. Tinha a sorte de adormecer com facilidade.
Ir ao fundo
As primeiras horas dos dias de semana eram rotineiras: cuidar da família e de si própria, tentar deixar o jantar adiantado, preparar as lancheiras dos filhos, resolver o que fosse preciso, levar dois dos miúdos à escola, ter a certeza que o mais velho saía de casa a tempo, etc., etc., etc. Horas depois, sozinha no carro, rezava quase sempre o terço “do dia” ou, como ela também dizia, “o mínimo indispensável, já que Nossa Senhora insiste tanto”. Gostava de assegurar esta oração logo de manhã para não correr o risco de se deixar engolir pela correria. Depois deixou-se estar calada, a pensar naquilo que a magoava. Não era agradável entrar nessa zona. Ficava com raiva, pensava mal daquela familiar, sentia-se cheia de razão e descobria-se do lado exatamente oposto ao que pensava que deveria estar. “Eu devia compreender, devia pensar no que gosto dela em vez de estar agarrada a isto, mas não dá, não dá. Aquela atitude é estúpida, ela não percebe, tem a mania que percebe tudo, se eu lhe disser alguma coisa vou ter de a ouvir uma hora a justificar tudo o que faz, não dá…” E quanto mais pensava, mais se magoava. Chegou ao trabalho e o dia foi mesmo dos mais difíceis. Não pensou em mais nada a não ser nas reuniões, apresentações e decisões que tinha de tomar. Não conseguiu rezar nesse dia nem nos dois dias seguintes. Ia tentando mas o stress não a deixava parar. Nas semanas seguintes manteve as visitas ao Sacrário, por vezes mais rápidas do que gostaria, outras mais distraídas e ia rezando mais durante o dia. Não sentia grandes mudanças mas confiava que Deus estava a olhar por ela.
A véspera
No dia seguinte era Natal. Margarida via o seu coração praticamente na mesma. A única mudança marcante tinha sido tomar consciência de onde era preciso mexer para se assemelhar a uma manjedoura e achava pouco. “Como é que eu vou passar o Natal?”, pensava de si para si. Tinha rezado mais, tinha conversado com o marido (para quem aquela zanga não tinha grande importância), tinha estado duas vezes com a tal familiar mas, por medo ou falta de paciência, não tocara no assunto e tinha desabafado com duas ou três pessoas que as conheciam a ambas e que, embora percebessem a sua mágoa, a aconselharam a deixar passar algum tempo e até conversarem sobre o assunto. Margarida recorreu à sua confiança no amor que Deus tinha por ela. Estava na fila para a confissão e, quando chegou a sua vez, foi direta ao assunto: pediu perdão por aquele seu não-perdão. A paz que sentiu depois deveu-se à sua certeza da presença de Jesus naquele Sacramento “não tenho de sentir, eu sei que Ele me perdoa, sei tão bem que Ele conhece estas minhas fraquezas todas e mesmo assim me quer como filha…”
O dia
Passou o dia 24 alegre e serena. Nada nem ninguém a perturbou. Não sabia bem se o peru tinha ficado bem assado mas não considerava isso um problema: “se não estiver bom, comemos menos. Isto vão ser dois dias a comer…”, comentou com o marido. “Também acho, não te preocupes.” Era um homem prático e conhecia bem o talento de Margarida para a cozinha. Sorriram. Na Missa do Galo, emocionou-se muitas vezes. O presépio, os cânticos, as leituras, tudo a tocava. Na homília, chegou a estremecer quando ouviu o sacerdote dizer que Jesus nasce de qualquer maneira, porque quer vir para junto de nós. Ao comungar, desmanchou-se. Tentava disfarçar o choro mas o marido não resistiu a sussurrar-lhe: “vês como o teu coração não é assim tão duro? Se fosse não estavas assim pieguinhas…”. E riram os dois, de mãos dadas, com os filhos a olharem para eles sem perceberem bem que alegria era aquela. Margarida percebeu que Deus nasce quando quer, seja num estábulo ou no coração de uma mulher que quer estar pronta para Ele nascer. E viu que, na Noite de Natal, o Advento acaba mas tudo pode começar. E chegou a janeiro cheia de força para tudo enfrentar e perdoar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.