A fé situa-se tradicionalmente entre as virtudes teologais, ou seja, entre aquelas que constituem, fundamentalmente, dádiva de Deus e se orientam para Ele, enquanto sua finalidade última, e que por isso formam o núcleo do caminho de salvação. Essa concentração na dimensão teologal, sendo compreensível e importante – caso contrário, situar-nos-íamos simplesmente no debate imanente de atitudes ou caminhos mais ou menos benéficos para os humanos – pode originar a falsa ideia de que a fé correspondesse a uma estrutura fixa, relativamente a um conteúdo também ele fixo: por exemplo, acreditar que Jesus é Deus, ou acreditar na Ressurreição, etc.
Ora, com isso, esqueceríamos algo absolutamente essencial e que também corresponde à tradicional teologia da fé (exemplarmente formulada, por exemplo, por Tomás de Aquino): em primeiro lugar, que se trata de uma virtude e, por isso, de uma possibilidade humana; em segundo lugar e pela mesma razão, que o ato ou a atitude de crer se articula humanamente, em condições históricas e biográficas muito específicas, que reconfiguram permanentemente o modo como se crê. Sem negar certa estrutura própria, ou mesmo um conteúdo fundamental, a realização concreta da fé cristã acompanha as dinâmicas que afetam os sujeitos e as comunidades humanas, no tempo e no espaço. A essas condições históricas concretas poderemos chamar “lugares” (topoi no grego), que conjugam de forma própria o tempo e o espaço. Por isso, o ato humano de crer – também no âmbito da fé cristã – possui os seus lugares, que variam segundo inúmeras circunstâncias. Levar em consideração essa variedade corresponderia à elaboração de uma topologia do crer. Aqui proponho uma breve topologia, que leva em consideração algumas das principais deslocações do crer no contexto das culturas contemporâneas.
Por isso, o ato humano de crer – também no âmbito da fé cristã – possui os seus lugares, que variam segundo inúmeras circunstâncias.
1. É indiscutível que assistimos, nos últimos séculos, a um processo de individualização das dinâmicas inter-humanas, com crescente valorização de cada sujeito, até ao extremo do individualismo. É certo que esse processo conheceu e conhece ritmos diferentes em diferentes partes do globo, e que também é muitas vezes contrariado por processos reativos diversos, mesmo do ponto de vista político, como temos visto ultimamente. Mas, de forma global, trata-se de um caminho sociocultural indiscutível e irreversível.
Também a atitude crente tem acompanhado essa deslocação da instituição para o indivíduo, na medida em que desvaloriza crescentemente o peso das estruturas institucionalizadas, com as suas regras estáveis e tendencialmente fechadas, para centrar o ato de crer na decisão pessoal de cada indivíduo, de acordo com as suas necessidades e expectativas.
Também a atitude crente tem acompanhado essa deslocação da instituição para o indivíduo, na medida em que desvaloriza crescentemente o peso das estruturas institucionalizadas, com as suas regras estáveis e tendencialmente fechadas, para centrar o ato de crer na decisão pessoal de cada indivíduo, de acordo com as suas necessidades e expectativas.
A fé cristã, em rigor, só pode saudar esse processo, pois a dinâmica da personalização – ligada a uma opção que não pode ser predeterminada por nada, nem etnia, nem família, nem ideologia – corresponde à noção originária do crer, já nos relatos do Novo Testamento. É claro que o processo de individualização pode colocar em risco a dimensão comunitária do crer, até ao extremo de anular a própria possibilidade de crer, que implica a orientação do sujeito para fora de si mesmo. Mas o lugar central do crer nas sociedades contemporâneas, sobretudo as do hemisfério norte, situa-se precisamente nesta relação mais ou menos tensional entre a dimensão subjetiva e individual e a orientação comunitária possível, normalmente com forte desvalorização – até ao desaparecimento, por vezes – da dimensão estritamente institucional.
2. A acompanhar esta dinâmica individualizante está a desvalorização dos conteúdos dogmáticos do crer, daquilo que poderíamos denominar “doutrina” e que ainda há relativamente pouco tempo dominava a catequese. De facto, a referência a esses conteúdos dogmáticos – Deus criador, divindade de Jesus, Igreja, Ressurreição, vida eterna, etc. – só tem lugar se estes forem enquadrados no trajeto biográfico das narrativas individuais ou comunitárias. A questão do sentido da existência – de cada existência pessoal – e da forma como ela pode articular-se no quotidiano vivido por cada um, ou por cada grupo, torna-se a questão fundamental, ao serviço da qual são colocados os conteúdos doutrinais do crer – que, em casos extremos, nem sequer possuem significado especial. A questão principal não seria: “em que acredito eu?” mas “o que significa acreditar, para a minha vida?”; quando muito, a questão seria assim transformada: “em quem acredito – em quem coloco a minha confiança fundamental?”. Para responder satisfatoriamente a esta questão, cada vez se considera menos importante a referência explícita a um conjunto de afirmações dogmáticas.
É claro que tal atitude pode chegar ao extremo de descaracterizar por completo a fé cristã, transformando-a numa vaga atitude crente, por vezes muito perto da superstição. Mas, em rigor, valoriza uma das dimensões fundamentais do crer – constituir sentido da existência pessoal quotidiana – que a referência excessiva a um corpo doutrinal poderia fazer definhar.
É claro que tal atitude pode chegar ao extremo de descaracterizar por completo a fé cristã, transformando-a numa vaga atitude crente, por vezes muito perto da superstição. Mas, em rigor, valoriza uma das dimensões fundamentais do crer – constituir sentido da existência pessoal quotidiana – que a referência excessiva a um corpo doutrinal poderia fazer definhar.
3. Constituindo as anteriores, eventualmente, as mais significativas deslocações do crer ao longo do último século – e que tiveram claras implicações sobre o perfil dos crentes cristãos, assim como da vida comunitária, nomeadamente no âmbito da paróquia e das respetivas atividades – mais recentemente temos assistido a movimentos de vária ordem, que permitem falar de outras deslocações, também significativas, embora provavelmente com impacto ainda não tão explícito como as anteriores. Uma delas parece mesmo fazer frente ao forte individualismo contemporâneo. Trata-se da crescente consciência de que cada humano – e a humanidade, no seu conjunto – é parte (ínfima) de um universo muito mais vasto e complexo, no interior do qual se encontra e é aquilo que é. Seja esse universo confinado à dimensão planetária – o que acontece sobretudo em movimentos ecológicos – seja alargado a uma perspetiva cósmica mais vasta, como acontece com as espiritualidades holísticas, o certo é que os humanos são cada vez mais considerados como um elemento mais, no interior de conjuntos e processos muitíssimo maiores, cuja complexidade lhes escapa e que, por isso mesmo, acaba por assumir características praticamente religiosas.
O crer acaba por ser compreendido como o modo de correspondência de cada sujeito às dinâmicas planetárias e cósmicas que o condicionam, nomeadamente na configuração da sua felicidade. O foco individual não chega a desaparecer – sobretudo na busca de vida feliz – mas é situado no interior de processos que transcendem o indivíduo e que, por vezes, o condicionam radicalmente. Em situações extremas, anula-se a noção de liberdade individual e confunde-se a divindade com o próprio cosmos ou a natureza, o que se torna questionável, na perspetiva do Evangelho; mas, por outro lado, a consciência de pertença a uma Criação que não é nossa e que devemos cuidar, respeitando-a na sua complexidade sistémica, é algo que corresponde perfeitamente à perspetiva bíblica da existência.
O foco individual não chega a desaparecer – sobretudo na busca de vida feliz – mas é situado no interior de processos que transcendem o indivíduo e que, por vezes, o condicionam radicalmente. Em situações extremas, anula-se a noção de liberdade individual e confunde-se a divindade com o próprio cosmos ou a natureza, o que se torna questionável, na perspetiva do Evangelho; mas, por outro lado, a consciência de pertença a uma Criação que não é nossa e que devemos cuidar, respeitando-a na sua complexidade sistémica, é algo que corresponde perfeitamente à perspetiva bíblica da existência.
4. Para terminar, poderíamos considerar o processo atualmente em curso, que parece transferir os ambientes da existência quotidiana da sua articulação analógica para a sua configuração digital. Ainda é difícil analisar o impacto desta deslocação sobre a constituição das identidades pessoais e das dinâmicas sociais. O que é indiscutível é que esse impacto será também significativo sobre os modos de crer e as suas diversas articulações. Por um lado, sem dúvida, as deslocações anteriores encontram aqui uma forma de desenvolvimento específico muito forte, com uma ampliação e exposição pública inéditas. Por outro lado, novas deslocações estão em curso.
É claro que o processo de virtualização, que os recursos digitais possibilitam e provocam, pode colidir com o princípio da encarnação e com o valor da corporeidade humana concreta, algo que pode ser lido no horizonte da tradição gnóstica, com a qual o cristianismo sempre teve uma relação difícil. Mas, por outro lado, as possibilidades de desenvolvimento de dinâmicas relacionais – com os outros humanos, mas não só – e de construção de identidade não são necessariamente negativas para a articulação do crer. As sociedades pós-digitais – que integram de modo quase indistinto o analógico e o digital – não serão, certamente, nem como as sonhadas sociedades digitais (segundo certas utopias da transferência para o on-line puro), nem como as sociedades pré-digitais. Teremos de aprender a crer, na fidelidade ao Evangelho, nesses novos lugares, onde já vivemos com mais ou menos intensidade.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.