“Queria-se um mundo um bocadinho mai mole”
Mixórdia de Temáticas
Uma pessoa sabe que já viveu demasiado tempo quando, mesmo tendo 26 anos, vive no planeta onde se denuncia a Bíblia por exibir conteúdo pornográfico. E o diagnóstico agrava-se para quem nasceu pouco depois do célebre caso Sousa Lara, quando o então subsecretário de Estado da Cultura com o mesmo nome, considerou que José Saramago deveria ser afastado de um prémio literário por ter escrito o Evangelho Segundo Jesus Cristo.
O episódio, desta vez, aconteceu no estado do Utah nos EUA. Ao abrigo da recente lei acerca de “Sensitive Materials in Schools”, a Bíblia faz parte da estupenda lista de 81 livros que, durante os últimos 60 dias, foram alvo de minuciosa análise, por um dos 15 comités criados para o efeito, que devem ser constituídos por um administrativo distrital, um professor licenciado que ensine inglês, um bibliotecário, e 4 pais, a fim de averiguar se o texto em estudo pode, ou não, ser parte dos recursos bibliográficos que uma escola disponibiliza aos alunos.
Tudo se torna mais singular se tomarmos em consideração a origem da legislação que promove este tipo de ações. Se excluirmos a também excecional eleição do democrata Lyndon Johnson em 1964, os republicanos ganham consecutivamente as eleições presidenciais neste estado desde o tempo da primeira vitória de Eisenhower em 1952. Aliás, desde 1985 o Utah é liderado por governadores republicanos, também, é certo, devido às suas particularidades geográficas e demográficas. Mas para quem ouve continuamente que, a cultura de cancelamento é uma cruzada da esquerda woke e identitária, é mais uma refrescante reviravolta a considerar.
É um facto que este tipo de iniciativas legislativas e culturais estão longe de serem orgânicas ou de obedecerem a um plano arquitetado por uma organização de comando central, mas tendem a revelar uma predisposição cada vez mais generalizada: expurgar a cultura, e, por consequência, a vida de tudo o que é ofensivo, “inapropriado” e “inconivente”, tornando o elogio a única saída, e a crítica o domínio da loucura.
É um facto que este tipo de iniciativas legislativas e culturais estão longe de serem orgânicas ou de obedecerem a um plano arquitetado por uma organização de comando central, mas tendem a revelar uma predisposição cada vez mais generalizada: expurgar a cultura, e, por consequência, a vida de tudo o que é ofensivo, “inapropriado” e “inconivente”, tornando o elogio a única saída, e a crítica o domínio da loucura.
Os efeitos são devastadores. Por um lado, ao esvaziar a possibilidade de debate, troca-se a discussão e a argumentação pelo escândalo, agora tornado o evento mediático por excelência. Por outro, debilitando a possibilidade da expressão da brutalidade da existência, da sua força e fulgor, escravizam-se cada vez mais as comunidades, para as quais só resta o trabalho, encurralado no domínio da sobrevivência.
No fundo, a intenção é desarmadilhar tudo o que há à nossa volta, para transformar a humanidade em algo higiénico e antisséptico. Da minha parte, só tenho a agradecer todo o alívio que me têm proporcionado, até porque a minha avó me dizia sempre para me lavar em condições, por ser uma falta de educação andar sujo ou a cheirar mal. Aliás, talvez seja eu que tenha que pedir desculpa por nunca ter rasgado desenfreadamente as páginas do Crime e Castigo, quando Raskólnikov mata a velha que o explora; ou por nem ter chamado a Alice à atenção, quando ela, deselegantemente, deixou a irmã sozinha, para ir atrás de um coelho, denunciando, logo, que, possivelmente, anda a consumir substâncias ilícitas.
No fundo, a intenção é desarmadilhar tudo o que há à nossa volta, para transformar a humanidade em algo higiénico e antisséptico.
A verdade é que, nesta indústria, a novidade mais recente são os leitores de sensibilidade. O objetivo é identificar os termos “potencialmente ofensivos” de diversas obras de arte, nomeadamente literárias, para assim ser possível lancetar qualquer demoníaca insinuação que possa surgir na imaginação de leitores mais débeis.
Ou seja, no mundo ideal, em que esta cultura se torna normal, quando pedir, numa livraria, o Animal Farm do Orwell, a resposta pode vir em forma de pergunta, do tipo: “Que idade tem? É que se tem 18 anos podemos vender a versão original. Se ainda não é adulto, temos esta versão mais modesta, em que os animais são substituídos por peças do faqueiro. Mas todas recicláveis, atenção, que nós aqui não trabalhamos com inox”. “E já agora: as Vinhas da Ira do Steinbeck, tem?”. “Olhe é pena. Agora já nem versão infantil podemos vender. É que sabe: na história os pobres são explorados e isso pode dar ideias muito pouco recomendáveis a quem lê”. “E Shakespeare ainda consegue arranjar?”. “Oh menino, isto está tudo tolo! Veja lá nas que se mete. Então vêm-me pedir uma coisas dessas, depois de toda a gente saber que esse inglês andou a escrever livros em que há gente que odeia outra gente, ao ponto de querer, inclusivamente, assassinar pessoas? Vamos lá ver. Alguma consciência, por favor”.
A verdade, é que quando eu andava no ensino básico, radical era fazer coisas estranhas atrás do pavilhão, mas, hoje, temo que ler o Macbeth em público, possa ser o limite mais próximo da delinquência a que alguém pode almejar. Afinal de contas, como alguém deste meio disse recentemente: “nós não fazemos imposições, damos sugestões’”. Que ternurento! Aliás, quem não se lembra das bonitas “sugestões” dadas recentemente a Salman Rushdie.
O facto, é que esta política de “proteção” do espaço público, de eliminação de qualquer rastilho negativo, só beneficia a ascensão da mediocridade e a substituição do pensamento pelo mérito do funcionário, tornando a civilização num mundo de passerelle, dominado por tribos rivais. A própria possibilidade de falha moral têm-se tornando completamente abjeta. E, entretanto, o que se faz é dar o mesmo de sempre mas numa escala ainda mais larga, porque, na verdade, numa sociedade do espetáculo, existe espetáculo, mas nunca sociedade.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.