Jesus ou Janus: pode a Igreja ter duas caras?

Dois discursos antagónicos apresentam-se hoje ao mundo como fiéis a Cristo, no que é uma desfiguração grosseira do seu rosto. É uma ferida grave na credibilidade da Igreja, que passa assim por confusa e contraditória, algo que Cristo não é.

“Cuidado com os falsos profetas! Vêm ter convosco como se fossem ovelhas, mas por dentro são lobos ferozes. É pelos seus frutos que os hão de reconhecer. Porventura podem colher-se uvas das silvas ou figos dos cardos? Portanto, a árvore boa dá bons frutos e a árvore má dá maus frutos. Assim pois, uma árvore boa não pode dar maus frutos e uma árvore má não pode dar bons frutos. Toda a árvore que não dá bons frutos corta-se e deita-se ao fogo. Portanto, é pelas suas ações que poderão conhecer os falsos profetas.” (Mt 7, 15-19)

No dia 6 de janeiro de 2021, o mundo foi surpreendido pelas imagens da invasão do Capitólio dos Estados Unidos da América por milhares de manifestantes pró-Trump. Talvez por esse motivo terá passado desapercebido, aos órgãos de comunicação social e também à generalidade das pessoas, o momento insólito que ocorreu durante o debate presidencial que se realizou, nesse mesmo dia, entre Marcelo Rebelo de Sousa e André Ventura. Decorriam 16 minutos e meio quando ambos os candidatos se declararam católicos, parecendo indiferente o facto de apresentarem discursos totalmente opostos: um inclusivo, outro segregador; um promotor de união, outro de divisão; um assente em afetos, outro gerador de ódios; um atento aos mais necessitados, outro forte com os fracos e fraco com os fortes.

Nas análises que se seguiram, um dos comentários mais repetidos foi que, sendo ambos os candidatos de direita, são de direitas diferentes. Já sobre o facto de ambos se afirmarem católicos, nada se disse. Será que quem hoje olha para a Igreja Católica vê, de facto, não duas faces, mas duas caras?

É verdade que “na casa do Pai há muitas moradas” (Jo 14, 2). E há muitos carismas e modos diferentes de seguir Jesus. Mas todos eles estão unidos em algo essencial: no Amor a Deus e ao próximo.

É verdade que “na casa do Pai há muitas moradas” (Jo 14, 2). E há muitos carismas e modos diferentes de seguir Jesus. Mas todos eles estão unidos em algo essencial: no Amor a Deus e ao próximo. De facto, após lavar os pés aos discípulos na sua última ceia com eles, Jesus indicou-lhes o critério pelo qual “todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.” (Jo 13, 35) Foi o mandamento novo, claro, direto, sem duplos sentidos ou segundas interpretações.

A fidelidade a este mandamento como condição obrigatória para que um testemunho fosse reconhecido como cristão foi clara desde a primeira hora. A declaração de João na sua primeira carta é exemplar: “Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus. (…) Se alguém disser: «Eu amo a Deus», mas tiver ódio ao seu irmão, esse é um mentiroso; pois aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. E nós recebemos dele este mandamento: quem ama a Deus, ame também o seu irmão.” (1Jo 4, 7. 20-21)

Muitos outros se seguiram, certos de que ser cristão implicava cuidar do próximo e tratá-lo como irmão amado, e nunca mandá-lo para a terra dele. Esta prática exemplar da caridade imprimiu nos cristãos do século II “um selo peculiar aos olhos de muitos”, conforme referiu Tertuliano na sua obra Apologeticum. Ali deixou também registada a conhecida frase “Vede como eles se amam, dizem de nós”, que para D. José Policarpo, “deveria continuar a ser a reação de quem olha a Igreja de fora, como o foi nos primeiros séculos.

“Vede como ele ama” não é certamente a reação de quem ouve André Ventura. Qualquer cristão minimamente sintonizado com a vida de Jesus deveria, por conseguinte, rejeitar todo e qualquer discurso contrário ao seu mandamento novo e expô-lo como não cristão. No entanto, ironicamente, a denúncia mais clara da total incompatibilidade entre o discurso de Ventura e a mensagem de Jesus Cristo foi assumida por alguém que se apresenta como não católica. Sem hesitações, Mafalda Anjos, diretora da revista Visão, expôs com toda a frontalidade que o rei vai nu: “Um verdadeiro católico não pode rever-se no pregador Ventura, em confronto permanente com o que foram os ensinamentos de Cristo e o que a Igreja Católica e o Papa Francisco hoje defendem. (…) Não é preciso ser um bom católico praticante para perceber que há conflitos de valores insanáveis. Qualquer pessoa que conheça minimamente a Bíblia, uma obra fascinante independentemente dos credos, percebe que o «pregador» político Ventura, por tudo o que defende e faz, tem a palavra de Cristo mal estudada. E se andou no seminário, fez de tudo menos absorver a essência cristã.”

No entanto, ironicamente, a denúncia mais clara da total incompatibilidade entre o discurso de Ventura e a mensagem de Jesus Cristo foi assumida por alguém que se apresenta como não católica.

Num artigo do Ponto SJ foi traçado um importante “perfil de Presidente da República à luz de «Fratelli Tutti»”, que, ao destacar quatro características – humanista, conciliador, amável, dialogante e promotor/a da paz social -, expôs a falta de qualificação do candidato Ventura. Mas isso ficou apenas nas entrelinhas, pois evitou-se qualquer referência personalizada. Tal como o cardeal D. António Marto, que em comunicado que pretendeu desmentir a autoria da frase “É uma vergonha existir uma pessoa que se diz cristão católica a defender as ideias imorais desse partido de ideologia fascista chamado Chega”, conforme veiculavam as redes sociais, limitou-se a pedir a todos os cristãos para “declararem através do voto a rejeição de qualquer tipo de populismo”.

Semelhante atitude tem demonstrado a Conferência Episcopal Portuguesa, cuja recusa em se demarcar explicitamente de André Ventura tem permitido ao deputado, que defende abertamente que “este Papa tem prestado um mau serviço ao cristianismo”, contar com “o apoio de muitos padres, de muitos sacerdotes no país inteiro, sobretudo desde a eleição para a Assembleia da República.” Depois da “imprudência” cometida pelo Patriarcado de Lisboa em vésperas das eleições europeias de 2019, em que apelou ao voto no partido de André Ventura através de uma publicação no Facebook, era fundamental que as declarações por parte das lideranças católicas – todas elas – fossem mais assertivas e não meias palavras destinadas a bons entendedores.

Esta omissão está a permitir que dois discursos antagónicos estejam a apresentar-se ao mundo como fiéis a Cristo – como sucedeu no debate de 6 de janeiro -, no que é uma desfiguração grosseira do seu rosto.

Esta omissão está a permitir que dois discursos antagónicos estejam a apresentar-se ao mundo como fiéis a Cristo – como sucedeu no debate de 6 de janeiro -, no que é uma desfiguração grosseira do seu rosto. E é também uma ferida grave na credibilidade do testemunho da Igreja, que passa assim por confusa e contraditória, algo que Cristo não é. Tal deveria ser suficiente para que a Igreja Católica em Portugal recusasse liminarmente a instrumentalização para fins pessoais e políticos contrários ao Evangelho de que está a ser alvo. Até porque são bem conhecidos os frutos violentos que os discursos populistas semelhantes ao de André Ventura geram. Basta recordar o que se passou no dia 6 de janeiro, nos Estados Unidos da América.

É verdade que, naquele país, o sistema político de dois partidos plasmou duas Igrejas católicas à sua imagem: católicos do Partido Democrático e católicos do Partido Republicano. Mas explorando oportunisticamente a questão do aborto, Donald Trump conseguiu dividir ainda mais os católicos daquele país. No meio do ruído da campanha eleitoral, foi paradigmático o confronto de posições entre supostas irmãs em Cristo: de um lado, a irmã Deirdre Byrne, religiosa das Irmãs dos Sagrados Corações de Jesus e Maria, que na Convenção Republicana afirmou que “Donald Trump é o presidente mais pró-vida que teve esta nação, defendendo a vida em todas as etapas”; do outro, a irmã Simone Campbell, apoiante de Joe Biden e signatária da carta aberta assinada por mais de três mil católicos que denunciaram que “não há nada ‘pró-vida’ em espalhar desinformação sobre a covid-19, mandar refugiados e requerentes de asilo de volta à morte certa, reinstituir a pena de morte federal, políticas que agravam a mudança climática e explorar o racismo para obter vantagens políticas”.

Apesar de possuir um carácter estruturalmente contrário ao Evangelho, Donald Trump – com a sua colagem oportunista ao movimento pró-vida – acabou por receber o apoio explícito de bispos para a sua reeleição e os votos de 50% dos católicos norte-americanos. Isto levou James Martin sj a escrever, após a invasão do Capitólio, um artigo duríssimo na America Magazine, cujo título fala por si: “Como as lideranças católicas ajudaram a dar origem à violência no Capitólio dos EUA”. Já o jornal National Catholic Reporter, no seu editorial do “dia seguinte” – 7 de janeiro -, defendeu que os católicos americanos precisavam de confessar a sua cumplicidade no golpe fracassado. Naquele momento, a Igreja Católica norte-americana apresentava, de forma gritante e sem se questionar, duas caras opostas, como Janus. E nesta condição não é possível cumprir a sua missão.

De modo que podia pensar-se que, com a eleição de um presidente católico (curiosamente apenas o segundo da história dos EUA, depois de John F. Kennedy), os católicos norte-americanos conseguiriam entrar num tempo de cura e de reaproximação. Não foi assim. E para se perceber a gravidade da situação, foram os próprios bispos que agravaram a divisão. Confirmou-se assim, infelizmente, a análise de Massimo Faggioli: a politização da Igreja Católica norte-americana trouxe custos importantes para a unidade interna, inclusive sacramental, do catolicismo naquele país, “que se encontra hoje numa situação de cisma suave.

É preciso pôr urgentemente um travão no extremismo que usa e ameaça a Igreja Católica em Portugal.  E é preciso reconhecê-lo abertamente: meias palavras não são suficientes.

Alguns poderão argumentar que nada disto teria acontecido se a Igreja Católica não se tivesse envolvido na política. E, de facto, até existe uma diretriz do Vaticano, publicada pela Congregação do Clero em 1994, que diz que os presbíteros devem “renunciar a empenhar-se em formas de política ativa”. No entanto, acrescenta-se que podem fazê-lo, assim “o exijam a defesa dos direitos da Igreja e a promoção do bem comum.”

A situação que hoje vivemos é claramente uma destas. É preciso pôr urgentemente um travão no extremismo que usa e ameaça a Igreja Católica em Portugal.  E é preciso reconhecê-lo abertamente: meias palavras não são suficientes. Não se trata de apelar ao voto em nenhum partido ou candidato em particular, porque nunca nenhum reflete a plenitude do ensinamento católico em todas as questões. Trata-se tão só de dizer que há, neste momento, um deputado, que apesar de se deixar filmar e fotografar frequentemente dentro de igrejas, tem um discurso destrutivo e divisionista que não pode vir de Cristo. E a Igreja Católica deveria denunciá-lo explicitamente, sem medo, porque quer continuar a ser imagem de Jesus, não de Janus.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.