“Até à Segunda Guerra Mundial, as Humanidades estavam no coração do debate público e do projecto político. Nos últimos anos, o seu papel desvaneceu-se e as Humanidades foram marginalizadas em proveito das ciências ditas ‘duras’. Importa tirá-las dessa marginalidade (…) e torná-las de novo presentes na esfera das políticas públicas”.
Foi este o mote da Conférence mondiale des humanités. Défis et responsabilités pour une planète en transition, organizada em 2017 em Liège pela UNESCO, que reuniu cerca de 1800 participantes do mundo inteiro.
“E se suprimíssemos as Humanidades?” Foi com esta pergunta provocatória que Jean Winand, professor de Egiptologia na Universidade de Liège (Decano da Faculdade de Filosofia e Letras e membro da Comissão científica do Congresso) intitulou a conferência inaugural.
1. Da nostalgia de uma Idade do Ouro com 100% de emprego nasce uma tendência para identificar formação com profissão. São as entidades patronais e sindicais, mas também os próprios estudantes e os seus pais, atraídos pelos mesmos objectivos profissionais para os filhos. E por fim são as próprias universidades, uolens nolens sujeitas a um poder político que muitas vezes coincide com o seu próprio poder financeiro.
É preciso alcançar ganhos imediatos. Assim, a lógica utilitária abate-se sobre os curricula universitários. As universidades são desencorajadas de criar percursos que não conduzam a níveis de empregabilidade de 100%: Universidades profissionalizantes, alinhadas com as necessidades da indústria e do mercado prefeririam formar (ou formatar?) diplomados directamente utilizáveis em determinadas funções económicas. Como se legitimássemos um novo perfil de servidão.
As universidades são desencorajadas de criar percursos que não conduzam a níveis de empregabilidade de 100%: Universidades profissionalizantes, alinhadas com as necessidades da indústria e do mercado prefeririam formar (ou formatar?) diplomados directamente utilizáveis em determinadas funções económicas. Como se legitimássemos um novo perfil de servidão.
Não nos espantem, pois, certas medidas mais radicais na reorganização do ensino superior, quando o objectivo é reduzir ou mesmo suprimir áreas inteiras do saber menos úteis ao mercado. Para que serve estudar línguas do passado se elas já não se falam nem sequer ajudam a arranjar emprego?
A este propósito, não resisto a partilhar a experiência mais recente na Faculdade onde ensino: quando durante alguns anos, o Latim e até o Grego eram “cadeiras” impostas pelos planos curriculares apenas em licenciaturas onde pareciam de todo inevitáveis, os números de inscritos eram escassos. Mas quando a reforma da oferta formativa permitiu aos estudantes maior flexibilidade na construção do seu próprio plano de estudos, os números aumentaram, como se os estudantes vissem ali uma espécie de reserva fecunda, indispensável para nutrir os diversos saberes de onde provinham, fosse o português ou as línguas modernas, a história, a música ou a filosofia …
Mas imaginemos que a pouco e pouco a indiferença pelo latim e o grego levasse à extinção do seu ensino. Dentro de poucas décadas, quando morresse o último latinista e o último helenista, teríamos de renunciar à recuperação de qualquer texto e documento nessas línguas (Em nossa casa, seria como perder a chave para abrir o baú dos álbuns e tesouros deixados pelos nossos pais e avós). Acabaríamos até por perder o património de bibliotecas e museus. Seria apagar camadas sucessivas de memória até à total amnésia. E com a extinção da memória extinguir-se-ia qualquer desejo de interrogar o passado. Uma humanidade desmemoriada perderia por completo o sentido da sua identidade e da sua história.
2. O desinteresse pelas Humanidades é claramente um reflexo da evolução da Universidade contemporânea. Por isso, dizia J. Winand, é preciso reflectir sobre o papel da Universidade e da instituição universitária, no contexto da aldeia global e de gerações de estudante sequestrados pelas redes.
Claro que seria absurdo ignorar que a internacionalização e o intercâmbio de alunos e professores favoreceram enormemente a investigação e a difusão do conhecimento, e contribuíram para o desenvolvimento de regiões menos favorecidas. Mas a globalização também traz consigo uma ameaça. Globalização, diz J. Winand, rima com uniformização. Quem lida com programas de financiamento da investigação assiste a critérios de avaliação cada vez mais tipificados. Desse modo, generalizam-se temas de investigação simplesmente por estarem ‘na moda’, tornando-se assim obrigatórios para a corrida ao financiamento (abstenho-me de dar exemplos).
Um caso de perigosa uniformização é a imposição crescente da língua única, não só na investigação como no ensino.
A adopção de uma língua única tem vantagens evidentes do ponto de vista das necessidades básicas de comunicação. Mas a riqueza da humanidade e das ciências humanas exprime-se precisamente na diversidade das línguas. Seria aceitável privar uma cultura (portuguesa ou outra) da sua própria linguagem científica, em nome da globalização que nos eleva as classificações internacionais? Não seria esse um novo poder de colonização?
Além da globalização, a universidade enfrenta ainda um segundo perigo: a mercantilização do saber, consequência da necessidade permanente de atrair recursos financeiros. É curioso verificar como o aumento exponencial do ensino superior coincidiu com o desinvestimento do Estado, ou seja, com o aumento da competição entre as universidades, primeiro a nível local e depois a nível global.
“Para os nostálgicos de uma hipotética unidade primitiva”, escreveu J. Winand, “Babel foi uma maldição. Pelo contrário, temos de ver nela [a pluralidade das línguas] uma oportunidade”. Não tem a história mostrado que foram governos autoritários os que tiveram a preocupação de eliminar dialectos ou línguas secundárias?
Além da globalização, a universidade enfrenta ainda um segundo perigo: a mercantilização do saber, consequência da necessidade permanente de atrair recursos financeiros. É curioso verificar como o aumento exponencial do ensino superior coincidiu com o desinvestimento do Estado, ou seja, com o aumento da competição entre as universidades, primeiro a nível local e depois a nível global. E foi assim que, da democratização do ensino passámos às universidades de primeira e universidades de segunda, num regresso encapotado às desigualdades no acesso ao Ensino Superior.
3. Devemos então interrogar-nos pela definição ou o papel da ‘Universidade’ numa sociedade humanista.
Queremos um estabelecimento para formação de especialistas destinados a determinadas profissões, que não só não fiquem caros à economia, como venham a aumentar as suas receitas? Ou queremos integrar nesse ensino e nessa investigação uma visão transversal, de carácter mais amplo, que ensine a reflectir sobre o sentido dessas práticas científicas e profissionais, de que a sociedade claramente precisa?
Ou seja, a sociedade precisa de diplomados que sirvam a economia, tão qualificados para a sua profissão quão docilmente ignaros de tudo o que excede o m2 do seu saber? Ou antes de pessoas altamente qualificadas e ao mesmo tempo dotadas de espírito crítico para diagnosticar os problemas da humanidade e exercer a responsabilidade social que lhes cabe?
Se queremos recuperar a centralidade do ser humano (que não se reduz ao bem-estar económico), não podemos suprimir as humanidades. A alternativa é forma(ta)r automatismos úteis mas sem alma, consumidores perfeitos, mas não pessoas livres, capazes de abraçar o bem comum.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.