Há uns tempos atrás assisti a Years and Years, uma série que retrata a vida de uma família inglesa ao longo dos próximos quinze anos, ao mesmo tempo que faz um interessante retrato da situação política inglesa, europeia e internacional. O cenário não é de todo promissor… Não querendo iniciar o ano com um tom negativo ou sem esperança, a verdade é que, olhando em retrospetiva a situação política da década que findou – e os acontecimentos dos primeiros dias deste ano – parece que os pontos de preocupação nos saltam mais depressa à vista. E, tal como é retratado em Years and Years, há um perigo real de muitos desses problemas se agravarem nos próximos anos.
A década que passou, porém, foi também marcada por sinais de esperança e pontos de encontro, um dos quais – também no campo político – foi a eleição do Papa Francisco. Todos reconhecemos o seu papel insubstituível, enquanto líder internacional, em defesa dos marginalizados, dos pobres, da casa comum, dos migrantes e refugiados e de todos os descartados da sociedade. Os seus escritos, as sucessivas Mensagens para o Dia Mundial da Paz e os seus discursos nas viagens que tem realizado, não poucas vezes a lugares considerados periféricos, contêm profundas propostas políticas inspiradas no Evangelho. E pela coerência entre o que diz e o modo como exerce a sua liderança, Francisco é uma voz escutada por pessoas dos mais diversos quadrantes políticos.
Na sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano, Francisco, sem ignorar os problemas que ameaçam a paz no mundo atual, fala da esperança como “a virtude que nos coloca a caminho, dá asas para continuar, mesmo quando os obstáculos parecem intransponíveis”. Rompendo com a “cultura da ameaça” e do medo, o Papa propõe a cultura do encontro como meio “para ultrapassarmos os limites dos nossos horizontes estreitos, procurando sempre viver a fraternidade universal, como filhos do único Pai celeste”. Francisco sublinha que as grandes e pequenas guerras começam “pelo facto de não se suportar a diversidade do outro, que fomenta o desejo de posse e a vontade de domínio”. E continua afirmando que as próprias guerras se alimentam “com a perversão das relações, com as ambições hegemónicas, os abusos de poder, com o medo do outro e a diferença vista como obstáculo”.
De um certo modo, é bom que o experimentemos e sejamos conscientes dele [o medo]. O problema, porém, surge quando nos deixamos vencer por ele ou quando deixamos que os líderes políticos usem esses medos para nos manipular.
Em todas as sociedades humanas parece existir um medo disseminado em relação ao que é diferente, que nos leva a rejeita-lo, a ostraciza-lo, a exclui-lo dos nossos círculos. De um certo modo, é bom que o experimentemos e sejamos conscientes dele. O problema, porém, surge quando nos deixamos vencer por ele ou quando deixamos que os líderes políticos usem esses medos para nos manipular. O medo, ao contrário da confiança, leva-nos a olhar para o outro como uma ameaça e fecha-nos à riqueza que o outro, na sua diferença, tem para nos oferecer. Para nos defendermos, e para protegermos o nosso espaço ou, por outras palavras, o nosso poder, criamos rótulos – o imigrante ilegal, o fascista, a estrangeira, o judeu, a feminista, o conservador, o colonialista, a católica, o cigano, o muçulmano, o criminoso, a beata, o homossexual, a refugiada – que nos desresponsabilizam do encontro pessoal e que impedem o diálogo autêntico. O rótulo que pomos, mesmo que não sejamos conscientes disso, é uma forma de controlo, de aparente poder sobre o outro. A partir daí, geram-se narrativas sobre a ameaça que essas pessoas representam para a estabilidade social, exploram-se e exageram-se medos e o clima de guerra instala-se.
Considero, no entanto, que não somos escravos nem do destino, nem dos comportamentos sociais básicos, nem dos medos, nem dos ciclos da história. Como cristão que crê na ação do Espírito na história, acredito que podemos responder aos medos com a confiança de que a fraternidade universal e a consequente inclusão – mesmo daqueles que rotulamos, que aparentemente representam uma ameaça à nossa estabilidade e ao nosso poder – são possíveis. De facto, quando decidimos baixar as armas e des-cobrir os rostos que tapamos com os nossos rótulos, e somos capazes de um encontro autêntico, acabamos por perceber a insensatez dos nossos medos e o ridículo dos nossos juízos precipitados. Enquanto cidadãos somos capazes de mais, e enquanto cristãos somos chamados a Mais. Nesse sentido, é urgente também sabermos distinguir quais os discursos que, mesmo que aparentemente nos agradem, estão apenas a explorar e manipular os nossos receios.
No meio das sucessivas tragédias de Years and Years, vemos como no final de contas aquilo que nos salva e nos protege do desespero, mesmo em tempos difíceis, é o encontro sincero (e por vezes inesperado) entre seres humanos; é o amor, mesmo a custo da própria vida. A série mostra-nos que, mesmo diante da maior tragédia, da maior instabilidade social, a união entre as pessoas gera esperança, a tal virtude que nos faz livres mesmo em tempos difíceis. Como nos relembra Francisco, “de facto, só se pode chegar verdadeiramente à paz quando houver um convicto diálogo de homens e mulheres que buscam a verdade mais além das ideologias e das diferentes opiniões. (…) Na escuta mútua, podem crescer também o conhecimento e a estima do outro, até ao ponto de reconhecer no inimigo o rosto de um irmão”.
Estaremos nós dispostos a dar corpo a esta esperança? Bom ano e boa década, cheios de esperança de que podemos fazer melhor!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.