Fronteiras: lugares de encontro ou desencontro?

Sem pontos finais, deixo assim o melhor que posso oferecer a estas reflexões: uma pergunta e consequentemente a abertura para um diálogo, exterior ou interior, com o potencial transformador de construir pontes e não muros.

Perante um novo ano, surge a oportunidade de adotarmos novas perspetivas. Tomando a forma de resoluções, desejos, novos estilos de vida, esta chance de “começar de novo”, não me parece tanto um livro em branco, onde rasgamos as páginas da história menos desejada que temos para trás, como uma ocasião ímpar para adotarmos uma visão renovada sobre a vida e o modo como nos posicionamos perante a pessoa do outro: será este um mero transeunte, figurante na nossa vida; um ator secundário com o qual travamos encontros ou desencontros, consoante o ditar da ocasião; ou será este um alguém que reconhecemos como proprietário de uma entidade própria, tomando, tal como eu, o papel de ator principal, e com o qual, com a consciência de quem procura construir algo, podemos fazer dos encontros ou desencontros, possibilidades de arquitetar uma paz profunda e entendida na diferença?

Valerio Vincenzo, no seu trabalho fotográfico “Borderline: Frontiers of Peace”, procurou desconstruir a ideia de uma fronteira como lugar de divisão, apresentando-a, em diversos exemplos, como lugar de comunhão, de partilha de relações, História, histórias, cultura. Procurou desmistificar a imagem única e negativa que temos das fronteiras, como sendo lugares de muros e arame farpado, lugares sem vida e por isso estéreis.  Uma fronteira pode, e muitos vezes tem sido, lugar de conflito destrutivo, de violência, de caos, mas pode também ser lugar de encontro, de construção e de uma coexistência harmoniosa.

Diversas são as questões que se colocam, quando falamos de fronteiras. Mas penso que existem duas particularmente relevantes aos tempos presentes, perguntas cujas respostas temos vindo a observar no exponencial de mudança positiva criado pelo trabalho da própria sociedade civil, pelo mundo fora, no modo como tem acudido os mais afligidos pela pandemia, trabalhos e esforços sedimentados na ajuda mútua e na solidariedade praticada por cidadãos, heróis anónimos do dia-a-dia, e não somente por ativistas de direitos humanos ou por movimentos sociais, ou tão pouco pelas próprias instituições governamentais.

Contrastando com estes focos de luz que têm iluminado o mundo e perante fronteiras aparentemente cada vez mais impercetíveis e translucidas por efeitos da globalização, por vezes parecemos viver, no nosso dia-a-dia, uma tentativa de aparente inclusão, de uma tolerância ténue e dúbia, que serve mais de escudo, do que de verdadeiro abraço de aceitação e total acolhimento.

Contrastando com estes focos de luz que têm iluminado o mundo e perante fronteiras aparentemente cada vez mais impercetíveis e translucidas por efeitos da globalização, por vezes parecemos viver, no nosso dia-a-dia, uma tentativa de aparente inclusão, de uma tolerância ténue e dúbia, que serve mais de escudo, do que de verdadeiro abraço de aceitação e total acolhimento.

Pergunto-me então as seguintes questões: Que fronteiras com muros e diálogos desencontrados encontramos à nossa volta? E como as vemos: como lugares onde as diferenças “irreconciliáveis” ditam os trâmites da convivência, ou como lugares onde, do conflito construtivo, inato ao confronto entre essências diferentes, poderá advir a criação de vida, de algo potenciador da esperança e reparador de relações?

Pergunto-me se, por vezes, não criaremos fronteiras artificiais à nossa volta, apenas porque temos dificuldade em nos relacionarmos além das assertividades ideológicas, religiosas, culturais. Questiono também se essa incapacidade ou “falta de jeito” em nos relacionarmos não virá de uma falta do bom uso das nossas verdadeiramente excecionais ferramentas de comunicação, oriundas da compaixão, e talvez da conceção simplista da paz e harmonia – ideais na convivência humana – como estados de nirvana, isentos de qualquer fator que possa gerar o mínimo de conflito ou atritos?

Ora, o conflito por si só, não me parece mau. Do conflito, do encontro de duas ideias distintas, podem nascer criações extraordinárias, tal como acontece na simplicidade da fusão de duas pigmentações distintas, que uma vez misturadas e portanto, numa espécie de confronto, geram uma nova criação, uma nova cor.

A própria paz, não me parece ser um estado de ausência. Ao invés, parece-me nascer da identificação de uma permanência, que uma vez reconhecida, coloca tudo o resto de não essencial ou verdadeiro nas nossas vidas em perspetiva, fazendo-os tomar o seu devido lugar de peças não centrais à nossa existência. Eu diria que essa permanência passa pelo reconhecimento da mais poderosa declaração de amor alguma vez feita: “Tu és o meu filho muito amado”.

Do conflito, do encontro de duas ideias distintas, podem nascer criações extraordinárias, tal como acontece na simplicidade da fusão de duas pigmentações distintas, que uma vez misturadas e portanto, numa espécie de confronto, geram uma nova criação, uma nova cor.

Dito pelo próprio Deus ao Seu filho, é a frase que Este nosso Pai nos diz diariamente e que caracteriza a nossa essência partilhada, mais do que quaisquer outras construções sociais posteriores de onde poderão surgir supostas diferenças “irreconciliáveis”.

Parece-me que esta manifestação de amor total, independente de expectativas ou resultados, é o melhor ponto de partida para qualquer resolução de ano novo, pois dá-nos as verdadeiras guias de leitura do ano que passou e as mais acertadas direções para o modo como podemos viver o novo ano: a de compreendemos a nossa origem, essência e caminho, mas também a origem, essência e caminho de um outro que, diferenças incluídas, é afinal composto pelo mesmo “material genético” que eu.

Perante esta oportunidade de recomeço proposta pelo iniciar de um ano novo, como me quero posicionar na vida? Como aquela ou aquele, que da diferença abrem caminho para o encontro e criação, para o acolhimento e para a paz, ou como alguém que perpetua o império do medo “tolerante” e do conflito destrutivo, tratando o outro como mero figurante da nossa vida e não como filho de um mesmo Pai, criado por um mesmo princípio e fim, o de Amar?

Sem pontos finais, deixo assim o melhor que posso oferecer a estas reflexões: uma pergunta e consequentemente a abertura para um diálogo, exterior ou interior, com o potencial transformador de construir pontes e não muros.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.