Francisco, um Papa jesuíta

Não deixo de me impressionar com um traço que encontrei nele e me tem acompanhado desde que entrei na Companhia, e que dificilmente vejo assumido com tão grande sabedoria: a “opção preferencial pelos pobres".

Em vésperas de eleição do novo Papa, que trará, naturalmente, um novo começo e uma nova sensibilidade à Igreja Católica, não gostaria de deixar de escrever um pequeno apontamento sobre o meu sentir sobre o pontificado de Francisco. Quando olho para a sua vida, não a consigo desligar da sua vocação de jesuíta, e, mais do que um cardeal ou bispo da Igreja, vejo-o sempre como um humilde jesuíta que apenas procurou cumprir a missão que Jesus lhe confiou enquanto seu companheiro. E, para mim, o mais extraordinário foi que, na sua tentativa de fidelidade, mostrou a toda a Igreja, e sobretudo à Companhia, algo difícil de crer, que os documentos das últimas Congregações Gerais e as Opções Preferenciais da Companhia eram possíveis de ser vividas num único e só homem.

O Papa Francisco viveu, a meu ver, o pleno cumprimento das principais intuições que foram confiadas à Companhia nos seus documentos inspiradores e mostrou que são possíveis de ser vividas. E mostrou-o de uma maneira holística sem pertencer a um sector apostólico, mas procurando vivê-las de uma forma transversal como é pedido a todo o jesuíta. Desde as últimas Congregações Gerais até às Preferências Apostólicas Universais da Companhia, esses foram os seus documentos orientadores no “munus” da sua missão como Papa.

E se muito já foi dito sobre o seu contributo para a universalização de termos inacianos como, o discernimento ou o cuidado da Casa Comum, a liderança inaciana ou colaboração com os leigos, não deixo de me impressionar com um traço que encontrei nele e que me tem acompanhado desde que entrei na Companhia de Jesus e que dificilmente vejo assumido com tão grande sabedoria. Refiro-me à difícil experiência da vivência da “opção preferencial pelos mais pobres” que tão dificilmente é compreendida e encarnada no nosso tempo.

Francisco não o fez a partir de uma atitude pragmática e militante ou de um sector apostólico, mas a partir de uma “Passionis Christi”, de uma paixão por Cristo amigo e companheiro dos mais pobres e esquecidos da História. Não vestiu a camisola do sector social nem se tornou CEO de uma grande ONG de solidariedade, mas fez do seu pontificado e do Vaticano a casa desses que são os últimos da terra. O ser Papa gritou bem alto esta opção e mostrou que, independentemente da função que ocupamos, podemos claramente e reconhecidamente viver e fazer esta opção de fundo na nossa vida.

Não sei qual vai ser a linha de serviço e de carisma do próximo Papa mas gostaria que, de entre todas as coisas de Francisco, não deixasse de dar continuidade a esta difícil e rara maestria da amizade para com os pobres. O resto, tudo o que possa dizer e dar à Igreja e à Companhia (temos um voto de obediência ao Papa para a missão), que nasça desta intuição primeira, que a Igreja começa nos pobres e é deles que recebe autoridade para servir e construir o Reino de Deus na terra.

Não sei qual vai ser a linha de serviço e de carisma do próximo Papa mas gostaria que, de entre todas as coisas de Francisco, não deixasse de dar continuidade a esta difícil e rara maestria da amizade para com os pobres.

Sem pretensões de me alargar, gostaria de comentar outro aspecto que me tocou particularmente no pontificado de Francisco e que me inquieta e provoca ainda hoje. Tive oportunidade de estar três vezes nos encontros informais que teve com os jesuítas, um em Moçambique, outro em Portugal, por altura da Jornada Mundial da Juventude, e finalmente em Timor Leste onde me encontro atualmente, e posso dizer que, independentemente do que foi partilhado, senti-me tocado pela iniciativa, pelo seu querer estar connosco. Creio que a tentação seria pensar que se tratava apenas de um gesto de cortesia e de amizade para com os seus companheiros. Mais bem fui vendo como nestes encontros nos foi fazendo respeitosamente um convite a estar com ele e a ser com ele verdadeiros jesuítas, tal como os documentos da Companhia nos convidam a ser e que ele foi. “Sede jesuítas como eu. Não tenhais medo de acreditar em vós mesmos e no que o Espírito vos delegou nos vossos documentos orientadores. É possível encarnar o que nos foi deixado, é possível viver essa expressão atualizada das nossas Constituições. Servi a Igreja comigo, sede meus ‘discípulos amados’, companheiros de todas as horas e de eucaristia.”

Creio que para a Companhia de Jesus o legado do pontificado de Francisco não pode acabar com o início de novo pontificado. Fiéis ao novo Papa temos a obrigação de reler e de assumir o que Francisco nos deixou como jesuíta à Companhia. Temos a obrigação de criar uma “ala Francisco” nos nossos fóruns, como memorial do único Papa jesuita da história e para mais num tempo que foi o nosso. Perder esta oportunidade é perder um forte impulso que o Espírito Santo deixou à Companhia para poder sair de um certo marasmo apostólico e identitário e reencontrar a garra apostólica que a caracterizou na sua fundação e que justificou a sua longa presença na história e na Igreja. Como diria o P. Amadeu Pinto sj, e a título de um grande agradecimento ao legado do Papa Francisco, um sincero e sentido “Bem Haja!”.

 

Fotografia: visita do Papa Francisco ao Bairro da Serafina, em Lisboa, agosto de 2023 (JMJ Lisboa)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.