Fio condutor

Fazer a experiência de uma vida entulhada de eventos e atarefada até ao milésimo de segundo não é necessariamente gozar uma vida mais completa, mais cheia e mais feliz. Pode, aliás, ser exatamente o contrário.

À vida contemporânea não faltam eventos. São muitos e sucessivos. Às vezes são tantas as hipóteses que não nos é fácil escolher. Constantemente inundados por ondas de dinâmicas, atividades curriculares e extracurriculares, Missas, missões, compromissos familiares, peregrinações, palestras, conferências, retiros, noites de oração, celebrações, campos de férias, ações de voluntariado, trabalho, saídas com amigos, encontros, reuniões: chegamos ao fim da lista já cansados. Experimentem repetir o trava-línguas conhecido: «sucessão sucessiva de sucessos sucessivos que se sucedem sucessivamente sem cessar».  É esgotante… Só de dizer diminui o fôlego e aumenta o stress.

Nalguns momentos a pressão pode ser tanta e os convites tão insistentes que quase nos sentimos obrigados a estar em todo o lado e a corresponder a todas as solicitações. É claro que é bom dizer que sim, com a alegre generosidade de quem se entrega, no sacrifício de si, mas também é importante aprender, justamente, a dizer não. Somos humanos, finitos, cansamo-nos, e não conseguimos estar em todo o lado ao mesmo tempo. Temos que, legitimamente, escolher entre possibilidades, equilibrando a vida e dando, de facto, prioridade ao essencial.

Nalguns momentos a pressão pode ser tanta e os convites tão insistentes que quase nos sentimos obrigados a estar em todo o lado e a corresponder a todas as solicitações.

Fazer a experiência de uma vida entulhada de eventos e atarefada até ao milésimo de segundo não é necessariamente gozar uma vida mais completa, mais cheia e mais feliz. Pode, aliás, ser exatamente o contrário: evasão e fuga da dureza que a realidade sempre oferece e que nos exige outra atitude mais humilde, mais contemplativa e mais serena.

Para que a vida não se torne partida e fragmentada precisamos de um fio condutor que nos oriente nas escolhas, que nos resgate das situações difíceis e problemáticas em que nos encontramos. Sem um fio assim, a energia não circula, esgotamo-nos e esgotamos tudo em cada momento. É necessária alguma coisa que unifique a vida, que nos ligue e nos dê unidade interior, para não irmos de evento em evento com o risco de ficarmos atascados no mesmo lugar. Como nas antigas animações… em que o cenário vai passando, mas as personagens estão paradas.

Não há uma receita infalível, mas ficam algumas indicações de caminho para enfrentar a dispersão e o desgaste ocupacional em que por vezes nos encontramos:

1. Começar pelo fim…
É urgente recuperar a finalidade. Os meios são fundamentais e não são indiferentes nem acidentais, mas o que verdadeiramente unifica a ação humana é o seu fim. Sem meta não sabemos para onde corremos, vamos à deriva, sem norte. Como se diz no mar, «para o barco sem rumo não há vento favorável». Mais do que fazermos muitas coisas é necessário sabermos para onde vamos. Ter um sentido, um objetivo, uma motivação é um poderoso fio condutor. Se repararmos, Jesus tem um fio que une toda a sua existência: fazer a vontade do Pai. Esse é o seu motor, o seu motivo ou, como Ele próprio diz, o seu alimento.

2. Pensar na vida…
Ter ideias claras é uma coisa muito prática. Fazemos muitas vezes resistência a este movimento. É de certa maneira mais fácil seguir com a vida sem ter que pensar muito sobre ela, anestesiados. Vamos andando, mas adormecidos. Sem dor, mas também sem especial alegria e entusiasmo. E muitas vezes é a experiência do limite e da fragilidade, nossa ou dos que amamos, que nos obriga a parar para pensar o sentido mais profundo da vida. Era bom refletirmos mais e mais a sério. E não necessariamente sozinhos. O mais belo é que podemos pensar em conjunto para seguirmos também assim, sustentados (e não substituídos) pela força da amizade e da companhia dos amigos com quem sonhamos a vida.

Muitas vezes é a experiência do limite e da fragilidade, nossa ou dos que amamos, que nos obriga a parar para pensar o sentido mais profundo da vida.

3. Não ter medo das pequenas (e grandes) escolhas…
Decidir é para hoje. Não adiar as decisões é aceitar sair da ‘paralisia decisional’ em que às vezes nos encontramos. Apesar da necessidade de ponderação a vida não pode ficar eternamente suspensa na hesitação. O exercício contínuo do discernimento não é compatível com a permanente indecisão, com o medo de arriscar, com o persistente adiar dos pequenos passos que precisamos de dar. Pode ser importante estabelecer pequenas metas. Não precisamos de definir tudo de uma vez. As grandes, mas sobretudo as pequenas decisões de cada dia, são o que verdadeiramente vai configurando o caminho da nossa existência. Quem não decide não faz caminho e as escolhas estáveis, bem fundadas, autênticas e coerentes formam na nossa vida um verdadeiro itinerário.

4. Permanecer e comprometer-se…
Saltar de coisa em coisa sem nunca parar assemelha-nos às abelhas indecisas que pousam em todas as flores, mas sem se deterem o suficiente para colher o néctar com que se faz o mel. A vida precisa de maturação e isso implica permanência, tempo, aprendizagem, espera e esperança. Demasiada pressa pode trazer a experiência amarga de quem só colhe frutos verdes. Colhemos em muitas árvores, mas nunca deixamos que os frutos amadureçam. E permanecer é outra palavra para dizer compromisso, porque as resoluções que implicam compromissos para a vida são o sinal da verdadeira maturidade humana e espiritual. Precisamos de perder o medo do que tem a marca do definitivo e do que nos convoca para um ‘para sempre’ onde a vida se empenha. Neste sentido, a dimensão vocacional, nas suas buscas e decisões, é o princípio unificador de toda a vida.

5. Do micro-ondas ao lume brando (ou dos eventos aos processos)…
É verdade, como afirma o Relatório final do Sínodo dos Bispos sobre os Jovens a Fé e o Discernimento Vocacional, que para muitas pessoas os eventos significativos em que participaram foram uma experiência de transfiguração, na qual experimentaram a beleza do rosto do Senhor e maturaram escolhas de vida importantes. Mas também é verdade que os frutos melhores destas experiências se recolhem na vida quotidiana. Os eventos são bons, mas não chegam, precisam de ‘fazer parte de um processo virtuoso mais amplo’. Como seria importante passar de uma vida e de uma pastoral de eventos para uma pastoral de processos, com verdadeira continuidade. No fundo passar do micro-ondas ao lume brando. Demora mais tempo é certo, mas certamente o sabor será diferente para melhor.

Vem aí o Natal cheio de eventos familiares, eclesiais, profissionais… mas talvez fosse bom procurarmos uma Estrela que nos indique Belém, lugar do espanto, da vida e da paz e que nos desafie a, decididamente, nos pormos, em conjunto, a caminho.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.