Em dia de Santa Cecília, padroeira da Música e dos músicos, voltemos o nosso olhar para aqueles e aquelas que dão a totalidade do que são a uma arte que, não só lhes exige toda a sua inteireza, como a pujança da sua vitalidade. Que terão em comum a Ir. Marie Keyrouz ou o recentemente falecido cantor José Mário Branco com uma mártir de Roma?
Todos, melhor ou pior, conhecemos a história quase lendária de Cecília, a mártir romana que, por causa da sua Fé, foi levada à morte. O pouco que sabemos chega-nos pelo relato do seu martírio contido na Passio Sanctae Caeciliae, um texto talvez mais literário do que histórico, que nos descreve a vida e o testemunho desta jovem, situando-a em meados do século III. De acordo com este relato, Cecília revela, no dia do seu casamento, a sua conversão ao Cristianismo e o seu voto de perpétua virgindade, gerando com isso a conversão do seu noivo que, por isso, acabaria por ser também ele martirizado. Cecília, mandada prender e recusando renunciar a Cristo, sofrerá uma lenta agonia, acabando por morrer dias depois, não sem antes deixar todos os seus bens aos pobres e à Igreja.
Como pode, então, esta mulher ser padroeira dos músicos se, aparentemente, não há qualquer referência à música neste texto? Uma das referências mais antigas da ligação da vida desta mulher à música chega-nos pela Antífona de Entrada da Missa em sua memória, na qual se lê que “enquanto os órgãos tocavam, a virgem Santa Cecília apenas ao Senhor cantava”. Esta ligeira referência que, para uns não passará de mero recurso estilístico, e para outros será resquício de uma tradição, coloca na boca desta mulher o canto para Deus, durante o seu martírio, como sinal de renovação da sua Fé.
Cecília é, então, para a Igreja, mártir: mártir porque padece uma morte atroz por condenação, mas tanto mais mártir (no seu sentido literal) porque testemunha das suas mais profundas convicções e, portanto, da força que lhe vinha de Jesus Cristo, seu Deus. Mas que poderá ter que ver esta história com os nossos dias? Mais concretamente, que poderá esta vida ter que ver com a música e com os músicos de hoje?
Parece-me, na verdade, que o nosso tempo, em muito marcado pela desconfiança e pela superficialidade, anseia por Verdade e coerência, e essas só são possíveis por via do testemunho sincero, do testemunho que robustece a mensagem com a vitalidade do mensageiro. E se isto assim é para tantas dimensões da nossa existência, é-o tanto mais para a cultura e, portanto, para os artistas. Quem são aqueles que nos marcam quando os escutamos? Quais são as vozes que nos ficam, que nos comovem, que nos abanam ou reconfortam? Estou convencido de que são as que estão carregadas da vida do cantor.
Se olharmos para os exemplos, aparentemente antagónicos, de Marie Keyrouz e de José Mário Branco, talvez possamos compreender melhor a que me refiro. A primeira, uma religiosa libanesa, reconhecida como uma voz da música sacra da Igreja no oriente, e fundadora do Instituto Nacional de Música Sacra, em Paris. O segundo, uma figura incontornável da música portuguesa do século XX, talvez a última voz do cancioneiro português, cuja voz e arte estão intimamente ligadas à revolução e ao partido comunista, ao lado de nomes como Zeca Afonso ou Fernando Lopes-Graça. Que poderão ter em comum?
Estas duas figuras, apesar das suas divergentes convicções, são claras imagens do ideal de testemunho que me parece essencial num músico dos nossos tempos. Ambos dão voz e corpo àquilo em que acreditam profundamente, ambos cantam o que experimentam no hoje, recordando o ontem e sonhando um amanhã melhor. A Irmã Keyrouz dando voz às palavras da Escritura, por vezes no idioma de Jesus, conferindo às melodias que entoa a pujança da sua própria vida, torna presente e actual a mensagem do Evangelho, como sinal de esperança. José Mário Branco, por seu lado, com uma extraordinária mestria para a canção, conjugando a mensagem com uma renovada sonoridade popular, foi voz desinstaladora, apontando a urgência da mudança, na mesma esperança do amanhã.
Ambos são, enfim, vozes que, confessando as suas próprias convicções, se tornam proféticas no seu olhar sobre a realidade que os rodeia, apontando caminhos e esperando o melhor que virá. Este, a meu ver, é um dos papéis fundamentais de um músico, qualquer que seja o seu estilo, nos dias de hoje: o testemunho das suas próprias convicções, a profundidade naquilo que executa e transmite, o compromisso com o mundo que o rodeia.
Mas, ainda que tenhamos dado grandes passos nos últimos anos, não sejamos inocentes: viver da cultura, no nosso país, não é simples e, muitas vezes, não é economicamente sustentável, acabando a grande maioria por se dedicar a trabalhos secundários, adiando ou negligenciado a sua vocação artística, em ordem à sua sobrevivência. Nos nossos dias, um músico sabe, à partida, que por amor à arte a que se sente chamado, virá a sofrer privações, a ter de tomar opções que, doutro modo, não seriam as suas. Por isso, a vocação de um músico tem também muito de sacrifício, isto é, de martírio, de entrega e até mesmo de possível sofrimento, além daquele que o próprio acto de criar lhe exige. Mas esse “martírio”, por outro lado, é também ele o que confirma o verdadeiro artista, em certo modo, à semelhança do ouro que é purificado pelo fogo: é prova e teste às suas convicções, que as robustece e fortalece a sua entrega àquilo a que se sente chamado.
Testemunho e martírio: duas características essenciais num músico dos nossos dias, que, provando a genuinidade da sua vocação artística, lhe conferem a solidez necessária para que a sua arte seja sinal profético, interpelador e profundo. Afinal, talvez faça mesmo sentido que Cecília seja a padroeira da Música…
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.