Segundo os dados do relatório Pisa de 2018, divulgado no passado mês de dezembro, os valores dos alunos portugueses baixaram desde 2015. Um em cada cinco alunos não consegue identificar a ideia principal de um texto.
A análise da OCDE, que avalia de três em 3 anos as competências dos alunos em ciências, matemática e compreensão da escrita, mostra que a maioria dos países não viu nenhuma melhoria do resultado dos alunos desde a 1.ª edição do PISA em 2000.
Segundo a OCDE, as dificuldades económicas continuam a ter efeitos negativos nos resultados escolares. No entanto, Portugal mantém-se próximo de países como a Alemanha, Eslovénia, Bélgica, França, República Checa e Holanda, e a verdade é que nenhum país europeu ocupa os primeiros lugares. Eles pertencem à Ásia: China, Singapura, Macau, Japão. Os países desenvolvidos do Ocidente baixam a média de desempenho e a Ásia oriental mantém-se em alta, com valores próximos aliás da Finlândia, o gigante educativo europeu… As causas financeiras não chegam para explicar este fenómeno. Não há uma relação infalível entre nível económico e desempenho académico.
Auto negação da cultura
Académicos e intelectuais, como Francisco José Contreras (catedrático de Filosofia do Direito na Universidade de Sevilha, cujo pensamento inspirou estas linhas), consideram que as causas da crise do nosso sistema educativo não são financeiras, mas culturais. A nossa cultura entrou num processo de auto negação e auto dissolução porque é uma cultura que já não se transmite a si mesma.
É também a ideia principal de Les déshérités ou l’urgence de transmettre de François-Xavier Bellamy, premiado pela Academia Francesa em 2014. O autor analisa o fracasso do sistema educacional francês como resultante de uma ideologia (de Rousseau, Descartes e P. Bourdieu) que se recusa a transmitir a cultura, criando assim deserdados.
Hoje considera-se a liberdade como um fim em si mesmo. Em que consiste a liberdade para o ocidental pós-moderno? Em que ninguém diga a outrem como tem de viver. Cada um decide o que é valioso para si. Como se não existisse uma hierarquia de bens, nem um conjunto objetivo de bens valiosos. No credo pós-moderno, o único limite da liberdade é não vulnerar a liberdade dos outros.
A liberdade pós-moderna
A educação pós-moderna perverteu a ideia de liberdade. Clássicos como Platão, Aristóteles e S. Tomás de Aquino, entendem a liberdade como o poder da razão sobre as emoções e desejos insaciáveis; homem livre é o que sabe governar desejos e pulsões mediante a razão. Assim entendida, ela é condição para a liberdade cívica: uma sociedade livre só pode ser composta por homens livres (capazes de governar as paixões e não sujeitos a elas). Daí a importância da virtude e da educação moral na filosofia de Aristóteles: uma sociedade livre tinha de ser formada por cidadãos virtuosos; e, vice-versa, uma sociedade formada por homens que não fossem livres (mas escravos das suas paixões) facilmente degenerava em demagogia e em tirania.
Mas nesta noção de liberdade há outra diferença crucial que a distingue da noção clássica. Os Antigos entendiam a liberdade não como um fim em si mesmo, mas como instrumento. A liberdade não era valiosa em si mesma, mas em virtude dos fins valiosos que permitia alcançar quando usada correctamente. Em Aristóteles, essa liberdade instrumental era condição para alcançar a eudaimonia ou felicidade, entendida esta não como mero ‘estado emocional positivo’ mas como êxito existencial, como realização das maiores potencialidades humanas levadas à per-feição.
Pelo contrário, hoje considera-se a liberdade como um fim em si mesmo. Em que consiste a liberdade para o ocidental pós-moderno? Em que ninguém diga a outrem como tem de viver. Cada um decide o que é valioso para si. Como se não existisse uma hierarquia de bens, nem um conjunto objetivo de bens valiosos. No credo pós-moderno, o único limite da liberdade é não vulnerar a liberdade dos outros. Garantida a liberdade dos outros, cada um é soberano para escolher o seu estilo de vida. E quem ousar defender que um estilo de vida é superior a outro é déspota em potência, um ultra dogmático que deve ser silenciado.
Garantida a liberdade dos outros, cada um é soberano para escolher o seu estilo de vida. E quem ousar defender que um estilo de vida é superior a outro é déspota em potência, um ultra dogmático que deve ser silenciado.
Educação moral pós-moderna
Perdeu-se assim de vista uma das missões mais nobres na educação que é treinar o jovem no uso correcto da liberdade. Se consideramos que a liberdade é a soberania absoluta do indivíduo para escolher o seu estilo de vida, então, que programa moral é lícito oferecer ao jovem? Nada mais do que “vive como quiseres desde que não violes os direitos do vizinho”. Essa é a única educação moral que a pós-modernidade estará em condições de dar.
A visão clássica da educação moral pressupunha, além disso, uma hierarquia objetiva das gerações. O adulto podia orientar o jovem a conduzir a sua vida porque possuía uma sabedoria moral a transmitir.
Hoje o adulto não quer esse papel. Na sociedade que idolatrou a juventude, os adultos pretendem ser eternamente jovens. Na sociedade líquida (descrita por Zigmunt Bauman), a juventude é aquela fase da vida em que todas as opções estão à nossa disposição. Quando começam as escolhas começam também as renúncias às infinitas possibilidades alternativas: de namorado, de curso, de universidade, de profissão. Esta dimensão trágica da liberdade é inaceitável para os pós-modernos, que por isso mesmo, aos 18 como aos 48 anos, rejeitam os compromissos definitivos e consideram que todas as portas permanecem abertas, porque são “livres”.
Humanidades sequestradas
O vazio da educação pós-moderna reflete-se também na irrelevância das Humanidades, que o genial Harold Bloom (desaparecido em 2019 aos 89 anos) denunciou de modo intransigente ao defender O Cânone Ocidental (The Western Canon, 1994; trad. portuguesa O Cânone Ocidental, 2011.).
Os estudos de Humanidades baseavam-se em grande parte no estudo dos grandes livros do cânone ocidental, com relatos fundacionais que incluíam, entre outros textos, as grandes epopeias, a reflexão dos filósofos e as tragédias gregas – quando grandeza e liberdade chocavam paradoxalmente com os limites da condição humana. Estudar Humanidades era aprender como ser um ser humano; ter como principal objeto de estudo o ser humano, para o compreender e para entender como usar a liberdade, a partir das grandes obras da nossa tradição.
Hoje, parece que eleger um cânone literário fere a experiência da liberdade sem limites. “Os grandes livros já não interessam e por isso as Humanidades estão em declínio”, escreveu Patrick J. Deneen professor de Ciências Políticas na Universidade de Notre Dame, “Science and the Decline of the Liberal Arts” in The new Atlantis. A Journal of Technology & Society (2009-10) 60-68).
“Hoje é mais fácil encontrar nas universidades doutrinação sobre multiculturalismo, estudos queer, estudos pós-coloniais e uma série de outros estudos de vitimização, com a insistência habitual na centralidade das categorias de género, raça, classe. Na Universidade moderna, as Humanidades parecem retirar-se e perder peso, em grande parte por causa da irrelevância solipsista a que foram reduzidas, o que naturalmente veio aumentar o desinteresse dos estudantes”.
Deneen chama a este fenómeno o “sequestro das humanidades”, paulatinamente tomadas por agendas políticas ou substituídas pela educação técnica e científica em nome das exigências da competição global. É o que acontece quando reinterpretamos as Cantigas de Amigo à luz da discriminação de sexo ou da dialéctica de género ou da dominação patriarcal ou racial…
Mark Steyn (“The present-tense culture”, New Criterion, 1997) reflete sobre o presentismo da nossa sociedade “envergonhada do seu passado”. O artigo que cito é de 1997, mas a obsessão acusatória do presente deu-lhe ainda mais atualidade, como se o passado não fosse mais do que uma longa noite de machismo, de racismo e de homofobia a dar-nos motivos de autoflagelação. Pedimos perdão pelos crimes introduzidos com a escravatura, mas esquecemos que a nossa cultura foi a única a abolir a escravatura.
Há na crise da educação um sinal do vazio da nossa cultura. Uma sociedade que não se ama a si própria nada faz por transmitir a sua cultura. Educar supõe que o mundo tem um sentido e que a vida é portadora de uma promessa, acreditava Hannah Arendt. Acreditam nisto também os pós-modernos?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.