1. Morte: de visita fugidia a companhia constante
A Morte de Ivan Ilitch é por muitos considerada uma obra incontornável sobre o tema da morte e o sentido da vida. Neste romance, Lev Tolstoi conta-nos a história de Ivan Ilitch, personagem que, atormentada pela morte próxima, se questiona e reflete sobre o seu percurso de vida. Quase todo o tempo, com o rosto voltado para a parede, Ivan Ilitch sofre solitário os mesmos insolúveis tormentos, martiriza-se com o insolúvel problema: “O que é isto? Será realmente a morte?”. E a voz interior responde-lhe friamente: “Sim, é a morte”. “Mas para quê tanto sofrimento?”, insiste Ivan. “Para nada. Além disso não há nada.”, diz-lhe a voz.
Infelizmente, hoje existem cada vez mais “Ivan Ilitchs” nos nossos hospitais e lares.
Apesar dos grandes avanços da ciência, ainda são muitas as doenças para as quais a a nossa capacidade de intervenção e cura é muito limitada. É o caso das doenças oncológicas e neurodegenerativas. Muitas vezes trazem consigo uma escalada de dor e sofrimento e que implicam um investimento nas medidas de conforto e limitação da dor dos doentes.
Para muitos, a morte deixa de ser uma visita fugidia para passar uma companheira de cabeceira durante períodos prolongados. Quem não tem ou não conhece um familiar, um Amigo ou um conhecido numa destas situações? Quem não tem medo de um dia ter a mesma sorte? É impossível ficar indiferente.
2. Jovens livres
A sociedade contemporânea, e mais em particular as novas gerações de que faço parte, tem vindo a aculturar, de modo cada mais prevalecente, os conceitos de liberdade individual, autonomia, direitos individuais e dignidade. Não há dúvidas de que existe uma grande assimetria entre a conceção de liberdades individuais dos Millenials e das gerações mais antigas. As novas gerações não estão dispostas a abrir mão do seu direito à autodeterminação, nem mesmo no momento da morte.
Altamente influenciado pela realidade internacional – em que ninguém quer ficar aquém de ninguém – o tema da eventual descriminalização da Eutanásia no nosso país está na ordem do dia. E está longe de ser consensual.
3. Conceitos essenciais para uma discussão informada
Qualquer debate honesto sobre a eutanásia e o suicídio ajudado deveria iniciar-se com um acordo na definição e sobre os conceitos em causa, por cada uma das partes.
A eutanásia ativa e voluntária consiste na efetiva antecipação do momento da morte natural por administração de fármaco ou conjunto de fármacos letais, em satisfação de um pedido voluntário e livre de um doente que invoca sofrimento insuportável e incontrolável. Muita gente de boa vontade não tem ainda opinião formada sobre estes temas. No entanto, a confusão causada pela “amálgama de conceitos” (sedação progressiva, sedação profunda e contínua, suspensão terapêutica, recusa terapêutica, omissão terapêutica) é grande e em nada contribui para a formação de juízos sólidos e esclarecidos pelos cidadãos.
É certo que todas estas práticas podem ter um desfecho comum: a morte do doente. Mas é na diferença entre os tempos, o modo, a vontade e a intenção, que reside o cerne da discussão atual.
De acordo com Ronald Dworkin, no seu livro Life’s Dominion(1993), é aparentemente irracional permitir que um doente recuse a terapêutica proposta, que o pode conduzir até à sua própria morte, e não autorizar a administração de um fármaco letal que rapidamente antecipe esse mesmo desfecho.
4. Quando nem as autoridades estão de acordo
Podemos ler no número do Catecismo da Igreja Católica a sua posição oficial sobre a eutanásia:
“Quaisquer que sejam os motivos e os meios, a eutanásia direta (…) É moralmente inaceitável. Assim, uma ação ou uma omissão que, per se ou na intenção, cause a morte com o fim de suprimir o sofrimento, constitui um assassínio gravemente contrário à dignidade da pessoa humana e ao respeito do Deus vivo, seu Criador.” (n. 2277).
No entanto, a posição da Igreja não é tão taxativa como se possa pensar à primeira vista. O mesmo Catecismo também afirma que:
“A cessação de tratamentos médicos onerosos, perigosos, extraordinários ou desproporcionados aos resultados esperados, pode ser legítima. É a rejeição do «encarniçamento terapêutico». Não que assim se pretenda dar a morte; simplesmente se aceita o fato de a não poder impedir. As decisões devem ser tomadas pelo paciente se para isso tiver competência e capacidade; de contrário, por quem para tal tenha direitos legais, respeitando sempre a vontade razoável e os interesses legítimos do paciente” (2278).
Ora, é precisamente na definição da fronteira entre “morte provocada” e “morte consentida” que reside, a meu ver, grande parte da complexidade do tema em discussão. A fronteira é mais ténue do que possa parecer numa abordagem meramente teórica do problema.
Tal como acontece com a maioria das posições da Igreja Católica, cuja objetividade teórica muitas vezes não se traduz em aplicação direta na prática, este tema merece enorme cuidado na sua discussão e cautela quanto à possibilidade de cairmos em extremismos dogmáticos que acabem por ter mais de julgamento e crueldade do que de verdadeiro amor e compaixão para com o próximo.
Hans Kung é um católico, filósofo e teólogo. Foi nomeado oficialmente, em 1962, conselheiro teológico pontifical pelo Papa João XXIII. Escreveu recentemente um livro interessante sobre este tema, cujo título, na tradução portuguesa da Relógio D’Água, é Uma boa morte (2017).
Durante séculos, foi imposta aos crentes cristãos a proibição de terminar com a vida. No entanto, no seu ensaio, Hans Küng defende que uma boa morte se fundamenta no respeito profundo pela vida de qualquer pessoa e nada tem que ver com o infeliz suicídio arbitrário. Se temos responsabilidade sobre a nossa vida, porque haveria essa responsabilidade de terminar na sua última fase?
É precisamente como cristão que Hans Küng apela ao direito de cada um para decidir responsavelmente sobre o momento e a forma da sua morte.Neste breve ensaio, que procura contribuir para a mudança de atitude da Igreja, Hans Küng mantém a coerência e a autenticidade que revelou no seu conflito com a hierarquia católica e que viria a provocar a proibição de lecionar em instituições eclesiásticas.
5. Um tema longe de estar encerrado
De fato, tal como muitos outros assuntos que, tradicionalmente, a Igreja Católica gostaria de dar como “encerrados”, o tema da Eutanásia não está encerrado. Antes pelo contrário: se mesmo entre os especialistas em teologia, o assunto não é consensual, parece-me normal que o mesmo aconteça entre os leigos.
Acredito que tenha sido precisamente com a intenção de fomentar essa discussão saudável e essencial que, por iniciativa de Sua Excelência o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida organizou um ciclo de debates sobre o tema “Decidir o fim da vida”. Tive o privilégio de participar num desses debates, enquanto representante convidado das novas gerações.
Enquanto jovem e de forma a melhor informar a construção dessa minha intervenção e também deste artigo de opinião, tomei a liberdade de, informalmente, auscultar diversos amigos católicos da minha geração. Curiosamente, neles encontrei uma posição bastante liberal relativamente a este tema, que muitas vezes não assumem publicamente por mero pudor.
Num artigo recentemente publicado pelo jornal Público, com o tema “A Guerra contra o Papa Francisco” (24.12.2017) refere-se: “A disputa central põe em confronto os católicos que acreditam que a Igreja deve liderar a agenda do mundo e os que, por outro lado, defendem que são as circunstâncias mundiais que devem definir as posições da Igreja.” Assumo-me, neste contexto, enquanto católico progressista.
Queiramos ou não, a Cristandade das nações faz parte do passado. As sociedades ocidentais já não se moldam a partir de leis estabelecidas em conformidade com a Igreja. Portugal, em particular, é hoje um Estado laico. Neste contexto, usar argumentos do foro religioso tais como “Só a Deus compete dar e tirar a vida“ para tentar limitar liberdades da população em geral poderá não ser a estratégia mais feliz. Talvez haja lições a aprender com o resultado do debate sobre a despenalização da Interrupção voluntária da gravidez.
6. Eutanásia e Cuidados Paliativos
A verdadeira força modificadora da Igreja está na capacidade de encontrar pontos de consenso com vista ao bem comum. Caso contrário, como poderemos ser o “sal da terra” e a “luz do mundo” (cf. Mateus 5, 13-14)?
E eu não tenho dúvidas de que, mesmo em relação à Eutanásia existe um enorme espaço para consensos.
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A importância de implementar, de facto, uma rede de cuidados paliativos de excelência e assegurar a devida formação pré e pós-graduada dos respetivos profissionais de saúde é hoje um dado adquirido. Nunca antes um Governo tinha investido tanto nesta área como o atual.
De acordo com o “Retrato da Saúde 2018” recentemente publicado pelo Ministério da Saúde, desde 2016 já iniciaram funções 12 equipas intrahospitalares de suporte em cuidados paliativos, cinco equipas comunitárias de suporte em cuidados paliativos e uma unidade de internamento de cuidados paliativos.
Adicionalmente, e de acordo com um artigo publicado no BMJ: British Medical Journal (2008), “Development of Palliative Care and Legalisation of Euthanasia: antagonism or synergy?”, conclui-se que os cuidados paliativos e a eutanásia voluntária não são mutuamente exclusivos, nem tão pouco se substituem. Apesar de relacionados, estes são dois temas diferentes e é importante não os confundir.
7. Pensar a Eutanásia numa perspectiva Católica
Infelizmente, em discussões alusivas a temas que despertam tantas paixões e convicções como a Eutanásia acaba-se, normalmente, por perder o foco. Quem realmente importa fica muitas vezes para segundo plano de discussão: os pobres, os moribundos, os desamparados.
É praticamente impossível resolver uma equação matemática sem conhecer a sua constante. Da mesma forma, antes de nos focarmos em questões constitucionais, teológicas, dogmáticas ou ideológicas, seria importante que nos preocupássemos com a questão mais simples de todas: “O que levará alguém a sentir um sofrimento tão profundo e transversal que justifique preferir a morte à vida?”
A tecnologia e a ciência têm evoluído em diversos campos da medicina, melhorando a qualidade de vida e limitando a dor. No entanto ainda existe sofrimento insuportável. Uma das áreas em que os fármacos ainda não têm a capacidade de atuar é a espiritualidade. Portanto, contas feitas, talvez seja por uma questão de sofrimento espiritual que muitos perdem o norte.
Independentemente de a Eutanásia ser ou não descriminalizada, por decisão da maioria dos representantes dos cidadãos na Assembleia da República, aquilo que deverá preocupar-nos mais, enquanto católicos, deverá ser encontrar a solução para a falta de amor e esperança que leva os mais vulneráveis a preferir abdicar do dom da vida a vivê-la.
A Bíblia baseia-se em dois mandamentos fundamentais: o Amor a Deus e o Amor ao próximo. É nossa responsabilidade levar até cada um desses próximos a luz, a compaixão e o amor.
Estou certo de que, mais do que através das limitações impostas pela lei, será através do Amor ao próximo que poderemos fazer com que a Eutanásia deixe sequer de ser um tema. Enquanto houver uma única pessoa que, em pleno uso das suas faculdades, prefira a morte à vida, a nossa missão de levar o amor onde apenas exista sofrimento e solidão estará incompleta. Talvez, no contexto histórico em que nos situamos, Deus nos peça que acompanhemos mais as pessoas concretas, do que as leis que regem a nação.
“Então Pilatos, vendo que nada aproveitava, tomando água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo e entregou-O para ser crucificado.” (Mateus 27:24)
Quantos de nós visitaram um enfermo, em estado terminal, num hospital nos últimos meses?
Quantos de nós usaram parte das nossas vidas ocupadas para levar amor a quem mais precisa?
Quantos de nós deixam de visitar aquele familiar doente que vive só, por causa da nossa vida demasiado ocupada?
Convicções e ideologias à parte, acredito que é na solidão e no sofrimento espiritual que reside grande parte da origem dos pedidos de Eutanásia. E esses, apenas podem ser vencidos com mais Amor ao próximo.
Estaremos nós, enquanto Igreja Viva e enquanto sociedade, à altura desse desafio?
Enquanto Católico, resta-me amar a Deus e ao próximo através das minhas ações e pensamentos sobre este tema.
Sentir compaixão por aqueles que na sua fraqueza, sofrimento e debilidade escolhem a morte ao dom da vida e não julgar.
“Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: “Não julguem ninguém e assim Deus não vos julgará! É que Deus há-de julgar-vos do mesmo modo que vocês julgam os outros, e usará a mesma medida que vocês usarem para os outros.” (Mateus 7, 1-5)
Pedir a Deus o dom de conseguir ser a Sua palavra junto daqueles que mais precisam, para que não sintam solidão e sofrimento.
Pedir a Deus que esteja sempre comigo para que, no dia em que a doença e a dor chegarem até mim, nunca o sofrimento se torne insuportável, eu consiga resistir.
“Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.” (Mateus 26:41)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.