Em tempos de decisão eleitoral, as divergências políticas entre cristãos tendem a revelar-se. É natural e saudável que assim seja enquanto manifestação da criatividade do Espírito e do grau de discricionariedade que o pensamento cristão oferece em termos de matéria social. No entanto, creio que este diálogo tem sido feito de forma insuficiente e facilitista, impossibilitando a própria Igreja de contribuir da melhor forma para a construção da comunidade política. Por culpa própria, certamente, mas com possibilidade de mudança profunda.
Numa entrevista ao jornal Público, Alexandre Soares dos Santos foi confrontado pela jornalista com o facto de tanto dizer coisas que politicamente consideraríamos à esquerda como outras à direita. A isto, o recém-falecido empresário respondeu peremptoriamente: “Eu não sou de esquerda nem de direita. (…) Sou é cristão.” Esta resposta resume aquilo de que a Igreja Portuguesa precisa na sua discussão sobre política: compreender o que significa ser cristão na política, afastando-se das mais que frequentes categorizações paralisantes e preconceituosas. Precisamos de nos afastar da dicotomia esquerda-direita, conceitos estes que são fortemente variáveis segundo as circunstâncias temporais, espaciais, culturais e políticas em questão, não possuindo qualquer valor por si. Talvez por esta razão o Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI) tenha optado por nunca os mencionar ao longo das suas mais de 600 páginas. Pelo contrário, observamos o próprio discurso religioso-político muitas vezes reduzido a estas duas vertentes: esquerda e direita.
Recusar ser considerado de esquerda ou direita não significa querer refugiar-se na sacristia, nem constitui sintoma de um indiferentismo ou relativismo político. Trata-se de assumir a identidade cristã como base fundacional da postura política, superior à mera contingência política do momento ou ao conteúdo programático da legislatura em questão. Remete-nos para um corpo doutrinário com mais de dois mil anos de história e evolução.
Claro que os cristãos devem participar na vida política das sociedades integrando as forças políticas existentes, de esquerda ou de direita, associadas a diferentes correntes ideológicas. No entanto será sempre uma ligação circunstancial pois, como ensinou Paulo VI, “A adesão a uma corrente política não será jamais ideológica, mas sempre crítica.” (CDSI 573)
A utilização deste vocabulário importado, que nos leva a associar a Igreja e Cristo à direita ou à esquerda, ao conservadorismo ou ao socialismo, é limitadora do seu propósito evangelizador.
A utilização deste vocabulário importado, que nos leva a associar a Igreja e Cristo à direita ou à esquerda, ao conservadorismo ou ao socialismo, é limitadora do seu propósito evangelizador. Enquanto utilizarmos esta linguagem como primordial, ofuscaremos o verdadeiro conteúdo da DSI, subjugando-o aos movimentos e discursos políticos do momento.
Devemos repudiar as simplificações que têm sido feitas sobre a DSI, e iniciar uma (re)descoberta dos seus princípios, bases e aplicação. Existe tanto a ser conhecido e discutido!
Basta um resumo rápido sobre a evolução da DSI desde a Rerum Novarum de 1891 até à Laudato Si do Papa Francisco para compreendermos o quanto o pensamento social cristão se tem desenvolvido de forma coerente mas sempre inovadora. Não se trata de um corpus estático e acabado, mas algo que pede uma adaptação às condições de vida segundo os lugares, as épocas e as circunstâncias.
Precisamos de conhecer os princípios da doutrina social da igreja, compreender como se articulam, aplicá-los e discuti-los. Discutir o que significa ter a dignidade da pessoa humana como fundamento da vida social e política, o bem comum como seu fim último, e o princípio da subsidiariedade como fomentador da responsabilidade pessoal e da participação. O significado do destino universal dos bens e os seus efeitos em matérias de propriedade, assim como a sua relação com a opção preferencial pelos pobres. O princípio da solidariedade e a sua aplicação nas relações internacionais.
Não podemos continuar a ignorar a existência de um Compêndio da Doutrina Social da Igreja, (cuja edição física em português é estranhamente difícil de encontrar). Não se trata de uma questão menor da religião cristã, e precisa de ser deixada de tratado como tal. Como referiu João Paulo II na encíclica Centesimus Annus, «O ensino e a difusão da doutrina social fazem parte da missão evangelizadora da Igreja.» Falar da doutrina social é falar do evangelho.
Devemos trazer os seus princípios para o debate, seja ele eclesial, inter-religioso ou secular. Devemos abordá-los, discuti-los, apropriarmo-nos do seu conteúdo e reconhecer a sua complexidade. Não basta mencionar questões pontuais e sonantes para suportar as opções políticas de um cristão. Os princípios “devem ser apreciados na sua unidade, conexão e articulação (…) enquanto «corpus» doutrinal unitário” (CDSI 162). Ao evocar de modo desarticulado e desconexo certos princípios em relação aos demais somos “levados ao seu emprego parcial e errado.” (CDSI 162)
É urgente recuperar o interesse pela Doutrina Social da Igreja. O Papa Francisco tomou a iniciativa de publicar o DoCat, uma versão mais reduzida e apelativa do Compêndio. Não haverá melhor instrumento para iniciar este caminho em Igreja, nem melhor tempo do que o actual, em que somos chamados a participar na nossa comunidade política. Precisamos somente de vontade, iniciativa e sobretudo de confiança, para vencer o medo do diálogo sincero. Tanto para a direita como para a esquerda.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.