Foi sem dúvida “com gáudio e primor” que chegou até nós, em Fevereiro de 2024, o mais recente álbum a solo do músico Jorge Cruz (Gafanha da Nazaré, 1975), composto, tocado, gravado e misturado pelo próprio e masterizado por Mário Barreiros. As dez músicas do disco “Transumante” desafiam-nos a fazermo-nos à estrada (de terra, claro), percorrendo paisagens, cheiros, sons e texturas do interior de Portugal.
Também bem portuguesa era a saudade que tínhamos de ouvir a sua voz, uma vez que já lá vão 13 anos desde o seu último álbum a solo e seis desde o álbum “Lebre” dos Diabo na Cruz, a última banda de que foi vocalista. O fim desta banda foi anunciado em 2019, para grande tristeza dos fãs do rock popular português, estilo no qual foi incontornável, além de co-criador.
Tendo nascido numa época marcada pela Revolução, cresceu num tempo em que a maioria da música ouvida em Portugal era em língua inglesa. Neste contexto, interpretou um papel essencial na promoção da música portuguesa moderna. Juntamente com os restantes membros das editoras independentes Flor Caveira e Amor Fúria, e com, entre outros, Tiago Pereira, criador do projeto A Música Portuguesa a Gostar dela Própria, quebrou preconceitos e evidenciou que a música cantada em português não tinha de estar ligada a uma ideia de ruralidade inculta ou atrasada.
Aprendeu do movimento tropicalista brasileiro – encabeçado por artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil – o modo como a cultura tradicional pode ser beneficamente influenciada por tendências contemporâneas estrangeiras. Assim, casou as sonoridades do cancioneiro oral português com o rock anglo-saxónico – cruzando melodias, letras, mas também instrumentos –, ao abordar a identidade e a história do seu país com transparência e orgulho, mas também com rasgo e ousadia. Não arrancando as raízes nacionais da sua tradição popular, atualizou-as e conciliou-as com o rebelde mundo do punk-rock, logrando estabelecer um evidente marco na história da música nacional.
Não arrancando as raízes nacionais da sua tradição popular, atualizou-as e conciliou-as com o rebelde mundo do punk-rock, logrando estabelecer um evidente marco na história da música nacional.
Desta forma, quebrou barreiras, subiu a palcos e coretos, enchendo auditórios nas cidades e largos nas aldeias. Acedeu, assim, a públicos distintos que se identificam com esta proposta artística vinda do antigo e imiscuída no novo, de coração rural e arrojo urbano.
Desde o fim da banda Diabo na Cruz, consequência da tinnitus que desenvolveu, Jorge Cruz tem escrito para músicos como Ana Bacalhau, Ana Moura, Cristina Branco, Gisela João, Luís Represas, Raquel Tavares, Teresinha Landeiro ou bandas como Amor Electro.
As músicas de “Transumante” são o fruto de quem se reconhece peregrino, de quem não sabe viver sem ser a caminho numa estrada habitada pelas pegadas do passado e pelos desequilíbrios do futuro, que para diante nos fazem dar mais um passo. É uma “viagem pelo nosso Interior e pelo interior de cada um”.
O regresso aos palcos para a apresentação do disco, no passado mês de Abril, deu-se sem pretensões, como quem quer simplesmente partilhar o gozo de criar canções e de as cantar. Sentado numa cadeira alentejana, bastou a sua voz e as duas guitarras que levou consigo para o acompanharmos no seu Caminho de Casa, uma casa onde o cheiro a terra pisada, o sabor a vinho verde tinto e os cantares de ceifeiras se vivem de forma atrevida e desempoeirada. Uma casa bem portuguesa da qual tínhamos tantas saudades.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.