A dignidade da pessoa humana, a solidariedade, o bem comum. A ideia de que a primazia deve ser dada aos pobres e a rejeição de um capitalismo predatório, orientado pela lei do mais forte, que desliga a riqueza do trabalho. Escrevo estas palavras e, se as ler em voz alta a alguém, dir-me-ão com certeza que se trata de um enunciado radical. E não o dirão olhando para a raiz dessa palavra que entronca na procura profunda de respostas para os problemas, mas nesta acepção, agora mais generalizada, de que se trata de um pensamento afastado da realidade.
Sim, estas são ideias radicais. Mas não no sentido de serem utópicas. São ideias que nos abanam, que nos confrontam com os limites da sociedade em que vivemos, que nos interpelam a pensar em noções que parecem estar a cair em desuso. A dignidade está hoje subjugada ao mercado, a solidariedade substituída por uma noção vaga de responsabilidade individual, que nos desresponsabiliza dos outros, o bem comum afastado em nome de um individualismo selvagem que nos impede de construir ou sequer dialogar com o outro.
A dignidade está hoje subjugada ao mercado, a solidariedade substituída por uma noção vaga de responsabilidade individual, que nos desresponsabiliza dos outros, o bem comum afastado em nome de um individualismo selvagem que nos impede de construir ou sequer dialogar com o outro.
Estas ideias radicais fazem todas parte da Doutrina Social da Igreja. Não são o programa de um partido radical de esquerda (embora de alguma forma o pudessem ser).
Pacheco Pereira, militante do PSD, tem muitas vezes feito o truque de ler passagens da Doutrina Social da Igreja convidando os interlocutores a indicar a sua origem. Quase sempre, tendem a pensar que esses enunciados são do PCP ou do BE.
E é então que Pacheco Pereira vai buscar ao baú os programas e os discursos dos primórdios do PPD-PSD. “Quando Sá Carneiro escreveu que o partido que criava considerava o ‘trabalhador como sujeito e não como objeto de qualquer atividade’ e que o ‘homem português terá de libertar-se e ser libertado da condição de objeto em que tem vivido, para assumir a sua posição própria de sujeito autónomo e responsável por todo o processo social, cultural e económico’, é da doutrina da Igreja que vêm estas palavras”, escreveu o cronista no Público em Maio de 2017.
Há uma espécie de movimento subterrâneo que fez deslocar as placas tectónicas em que assentavam os partidos, em direção a uma visão mais individualista, mais implacável para com os fracos (que são vistos como falhados), mais protetora dos que tudo têm, com o argumento que a riqueza desses jorrará como por magia para os de baixo, quando todos os números mostram que o que está a acontecer é que a acumulação é cada vez mais desigual.
Segundo a Oxfam, dois terços da riqueza produzida no mundo entre 2021 e 2023 ficaram nas mãos de 1% da população mundial. E é à luz disso que gostava que nos retivéssemos nas palavras do Papa Francisco. “Ninguém se escandaliza se eu der uma bênção a um empresário que talvez explore as pessoas: e isso é um pecado muito grave. Mas escandalizam-se se eu der a bênção a um homossexual…. Isso é uma hipocrisia”.
Francisco obriga-nos a olhar para o que se tornou invisível. Enredados em guerras identitárias muitas vezes fúteis (mesmo que em nome de direitos inquestionáveis), perdemos de vista a importância da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, do bem comum. Devíamos pensar sobre isso.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.