Escolher a esperança

François Varillon, sj dizia que os cristãos deviam ser “adversários do absurdo”, conscientes da força que os acompanha, venha o que vier. Não é um otimismo tolo, é a fé que se reforça ao desligar o ecrã e olhar pela janela.

Não sei se haverá por aí alguém como eu, enredado numa inquietação que lhe vem ao encarar os destinos do mundo, ao mesmo tempo que compreende finalmente o valor da Esperança enquanto virtude teologal. Se sim, fica aqui a partilha do que tenho verificado ser para mim um caminho possível para lutar contra a desesperança: desviar o olhar do macro e focar-me no micro, onde está a vida mais real, concreta, feita de rostos empáticos e empenhados num mundo melhor. Parece uma banalidade, talvez, mas muitos clichés porventura não passarão de verdades repetidas.

Recentemente, saí das redes sociais por sentir que me estavam a esvaziar de esperança. A minha “echo chamber” (a bolha de eco ou câmara de ressonância) em que eu me inseria de cada vez que abria o Instagram ou Facebook, só reforçava as minhas crenças e os meus medos. O algoritmo propunha-me aquilo que ele já sabia que iria prender a minha atenção e que eram frequentemente posts sobre as medidas executivas do Trump e os disparates do Elon Musk, mais as inundações de Valência, os incêndios da Califórnia ou a guerra na faixa de Gaza, tudo temas que me enchiam diariamente de medo do futuro e descrença no bom senso da humanidade.

Desinstalei as aplicações, passei a ter mais tempo, a escolher criteriosamente as minhas fontes de informação, a ler mais e a dormir melhor. Não deixei de abominar Trump e a sua corte, nem de temer a falta de compromisso da oligarquia dos poderosos do mundo perante a emergência climática. Esses grandes males não cessaram, associados a uma ferramenta poderosíssima de que dispõem, que é a inteligência artificial. Mas eu optei por retirar deles o foco do meu olhar e virar-me para algo que me desse mais esperança, pois sem essa, sem a esperança, deixo certamente de ser parte das soluções e passo a ser eu também parte do problema.

Esses grandes males não cessaram, associados a uma ferramenta poderosíssima de que dispõem, que é a inteligência artificial. Mas eu optei por retirar deles o foco do meu olhar e virar-me para algo que me desse mais esperança, pois sem essa, sem a esperança, deixo certamente de ser parte das soluções e passo a ser eu também parte do problema.

Como é que isto se faz? Nestes dias, em mim, tem passado, por exemplo, por me deter intencionalmente no rosto das pessoas concretas que fazem o bem à minha volta. E nos gestos. Prestar atenção aos professores dedicados, aos bons vizinhos, aos meus amigos, aos voluntários que conheci este fim de semana e que se estão a preparar para ir em missão para o sul do mundo, daqui a uns meses. Focar-me na sua humanidade, na sua vulnerabilidade exposta, nos sacrifícios pessoais que fazem, nos medos que não os bloqueiam. E é aí que se torna palpável a convicção de que Deus não falha, enquanto tudo o resto passará.

Claro que, mesmo que deixe de seguir, diariamente, os passos de Trump e Musk, eles não deixam de ser uma ameaça premente contra milhões de pessoas vulneráveis, contra a nossa Casa Comum. Mas a vida concreta fora do pódio, fora daquele palco, tem muito mais gente, é rica e fervilhante, e é quase ofensivo focar-me num punhado de bullies quando o Bem acontece gesto a gesto, relação a relação. Só com a inspiração de toda essa atividade (sobre a qual se poderia certamente dizer: “e Deus viu que era bom!”) é possível responder ao apelo do Papa Francisco, quando disse que devemos ser “sonhadores que nunca se cansam”[1]. Porque precisamos de comunidade para ter horizonte.

Na inquietação destes tempos, lembrei-me de Maria que, perante a proposta do anjo, pergunta, perplexa: “mas como será isso”? Também ela estava perante uma situação que contrariava toda a sensatez e a assustava, também se questionou quanto ao futuro, mas não deixou de se atirar de cabeça. Também nós podemos confiar assim, mas precisamos de sinais de esperança, e esses, tal como a voz de Deus, ouvem-se na brisa discreta. A comunidade reconhece-se desfocando-nos daqueles que fazem um mal que não controlamos, e deixando-nos contagiar por quem, na simplicidade de uma vida concreta, age com amor.

François Varillon, sj dizia que os cristãos deviam ser “adversários do absurdo”, conscientes da força que os acompanha, venha o que vier. Mesmo sabendo das desolações do nosso tempo (…“pensemos nas guerras, nas crianças metralhadas, nas bombas nas escolas ou nos hospitais”…[2]), devemos acreditar na promessa do Senhor aqui e agora: “Quando passares pelas águas estarei contigo, quando passares pelo fogo, não te queimarás.” (Isaías 43,2). Não é um otimismo tolo, é a fé que se reforça ao desligar o ecrã e olhar pela janela.

[1] Abertura da Porta Santa da Basílica de São Pedro, 24 de dezembro de 2024, inaugurando o Jubileu da Esperança.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.