Quando regressa o Natal, regressa a polémica sobre a presença dos presépios em espaços públicos, sobretudo nas escolas. Muitas instituições abandonaram a tradicional construção de presépios e exposição de imagens religiosas do Natal, ou proibiram mesmo os tradicionais cantos ao Menino. As ofensivas à liberdade religiosa ganham maior relevância por ocasião das manifestações públicas da fé em Jesus Menino.
Na minha Faculdade, onde se lecciona “Origens do Pensamento Ocidental”, foram eliminadas não só as figuras do presépio como as árvores de Natal e toda e qualquer decoração natalícia. A Festa de Natal dedicada às crianças foi substituída por um Jantar de Natal de trabalhadores e acabou por reduzir-se a um “higiénico” coffee break, em nome da neutralidade. Assim mandam as regras de higiene social e multiculturalidade. Ou seja, com uma mão transmite-se a memória e com a outra se oculta.
Os mais incautos dos nossos filhos pensarão mesmo que, pois se tudo não passou de um conto de fadas, celebrar o Natal na escola é o mesmo que celebrar o nascimento da Cinderela ou do Homem Aranha – talvez com a diferença de o Natal lhes trazer à imaginação a nostalgia da vida familiar, ou a esperança no smartphone topo de gama que esperam receber. Alguns nunca tiveram de facto a oportunidade de saber que o nascimento de Jesus é mais do que o conto de fadas; um acontecimento histórico que faz parte essencial da memória e da cultura de muitos povos.
Os mais incautos dos nossos filhos pensarão mesmo que, pois se tudo não passou de um conto de fadas, celebrar o Natal na escola é o mesmo que celebrar o nascimento da Cinderela ou do Homem Aranha – talvez com a diferença de o Natal lhes trazer à imaginação a nostalgia da vida familiar, ou a esperança no smartphone topo de gama que esperam receber.
As ofensivas ao presépio
Nos Estados Unidos, a pedido de um cidadão que protestou contra o uso dos seus impostos na iluminação, os moradores de Knightstown, no Estado de Indiana, viram ser retirada a cruz luminosa colocada sobre a árvore de Natal. A autoridade não pôde fazer mais do que acolher a demanda, enquanto os moradores reagiram à ofensiva distribuindo cruzes de madeira e colocando-as nos ramos da árvore.
Em Madrid, o fim do tradicional presépio luminoso na Porta de Alcalá deu origem a uma espécie de revolução dos presépios, com centenas de presépios que ali foram depositados pelos mais descontentes. Mas a programação municipal e a decoração das ruas abandonou o sentido histórico-religioso do Natal; e até o nome foi sendo lentamente substituído por Festa das Luzes, Solstício, ou Festas de Inverno.
A tradicional Cavalgada dos Reis Magos, tradição multitudinária extremamente enraizada, também foi objeto de ‘limpeza’ por parte do Alcaide de Valencia, Joan Ribó, que tem sido um dos principais referentes do laicismo extremista naquele país, e que em 2015, em nome da tolerância, eliminara toda a simbologia cristã do cemitério e proibira o seu uso nos funerais.
Também são já conhecidos os presépios da autarca de Barcelona, Ada Colau, empenhados em esvaziar o Natal do seu significado cristão. Este ano, a Sagrada Família é representada por um conjunto de cadeiras vazias em torno de uma mesa coberta de … musgo e palha, iguarias para os comensais. É certo que, diante do “Pai Nosso Blasfemo” de 2016, o presépio de 2018 parece uma obra inocente. Mas não será essa leitura o resultado da nossa insensibilização em relação às ofensas contra os sentimentos dos cristãos? Parece que, segundo os cânones do politicamente correto, com os muçulmanos não se deve brincar; com os cristãos, pelo contrário, até convém brincar. Uma certa impunidade protege os “humoristas”.
Xavier Rius, diretor de E-Noticies, que se declara agnóstico, foi uma das vozes que criticou esse presépio bizarro de 60.000 Euros, a que chamou obra de esquerda caviar: “Até para os não crentes, (…) o Natal é o Natal”, escreveu o periodista.
E em 2011, já tinha escrito no sentido de manter os símbolos tradicionais do Natal, por razões que, antes de serem religiosas são simplesmente culturais: apesar de se declarar agnóstico, apesar não ter recebido mais do que a primeira comunhão, apesar de os seus filhos não serem batizados nem sequer ir à Missa, em sua casa faz-se a árvore de Natal e o presépio, e esperam-se os reis Magos com velas acesas “porque, se perdemos as tradições perdemos a identidade”.
Apesar de se declarar agnóstico [Xavier Rius], apesar não ter recebido mais do que a primeira comunhão, apesar de os seus filhos não serem batizados nem sequer ir à Missa, em sua casa faz-se a árvore de Natal e o presépio, e esperam-se os reis Magos com velas acesas “porque, se perdemos as tradições perdemos a identidade”.
Que tem isso a ver com a escola?
É que o fim da liberdade religiosa e o fim da liberdade de educação andam juntos. Perda de identidade foi o que Rius lamentou na escola dos seus filhos, ele que se afirma no topo da laicidade e da opção pela multiculturalidade. “Os meus filhos vão à escola pública, onde há 50% de imigração; em Dezembro celebram, já não o Natal, mas a chegada do Inverno; este ano, em vez de cantarem vilancicos, cantaram canções do mundo, country, tango, samba… já não esperam o pajem [dos Reis Magos], nem fazem o presépio…”
Na Noruega, uma escola primária em Stavanger foi notícia por causa da decisão da sua directora, Frøydis Anthonsen, de proibir os alunos de cantar canções de Natal, para não ofender os não crentes. A imprensa norueguesa dizia ainda que todos os anos as crianças cantavam ‘Deiling er jorden’, um hino tradicional do Norte da Europa, mas nesse ano a direcção só permitiu que se cantarolasse a melodia, sem texto. Outras canções foram igualmente expurgadas, suprimindo todas as referências a São Nicolau, Pai Natal, Menino Jesus… Para ficar tudo mais desinfetado, as crianças também deixaram de ir à Igreja e o nome da Festa mudou: A “Celebração do Natal” passou a chamar-se “Reunião de Dezembro”.
Muito recentemente, em Itália (Riviera del Brenta, área metropolitana de Veneza), uma professora do 5º ano decidiu que a canção de Natal italiana “Buon Natale in allegria” fosse cantada sem mencionar o nome de Jesus. Mas as crianças não aceitaram. Segundo a agência italiana ANSA, uma aluna de 10 anos começou a recolher assinaturas para impedir que o nome do “aniversariante” fosse suprimido, até que os professores concordaram em manter o texto original da canção.
Segundo a agência italiana ANSA, uma aluna de 10 anos começou a recolher assinaturas para impedir que o nome do “aniversariante” fosse suprimido, até que os professores concordaram em manter o texto original da canção.
Secularização em marcha: é o que queremos?
Primeiro mudamos os nomes: férias de Natal passam a férias de Inverno. Depois, proíbem-se os presépios – contentamo-nos com a árvore de Natal, cuja simbologia, aliás, menos profana do que podemos imaginar, já desconhecemos. A seguir, censuramos canções, para que Jesus não seja nomeado, ao mesmo tempo que substituímos silenciosamente o Menino pelo hegemónico Pai Natal, que anda em todo o lado a dar prendas. Até trocamos o início do Advento pela generosa Black Friday, que tem muito mais impacto nas nossas carteiras. Por fim, as escolas podem tranquilamente proibir o Natal e impôr o Halloween.
A secularização segue a sua marcha, a ponto de tocar um dos elementos essenciais da cultura: o calendário. Já todos nos cruzámos com o postiço (para não dizer manhoso), sistema de datação BCE / CE (Before the Common Era / Common Era) em vez de BC/AD (Before Christ / Anno Domini)… Algumas editoras impõem-no aos autores. Há países, como o Uruguai, que preferiram designar o Dia de Natal por dia da família; Semana Santa por semana do turismo; e Dia da Imaculada por dia das praias…
Privatização da fé, um passo falsamente libertador
A tendência não devia surpreender-nos: há algum tempo que a sociedade se distanciou da religião, não só impedindo manifestações públicas, mas criando um mundo sem lugar para Deus, com critérios de juízo contrários à antropologia cristã. Mas o que se contesta no presépio é a sua legitimidade no espaço público e na escola, como se fé e religião só fossem toleradas enquanto facto privado. Assistiríamos então à privatização da fé, como única fé aceite pelos laicistas, aplicável a todas as religiões. Todas as religiões deveriam abandonar o espaço público e confinar-se ao espaço doméstico, até obtermos uma sociedade sem Deus. Essa, sim, seria a sociedade perfeita. Essa seria a “neutralidade” em relação a todos os credos, a condição da presumida laicidade. Mas como pode ser neutra a atitude de quem expulsa as religiões do espaço público e impede a sociedade de se relacionar (religio) com Deus?
Mas o que se contesta no presépio é a sua legitimidade no espaço público e na escola, como se fé e religião só fossem toleradas enquanto facto privado.
Sim, o Estado pode proibir a manifestação pública da religião, em nome da ordem pública e do bem comum. Mas quando proíbe um presépio ou censura músicas e canto, está a dar um passo falsamente libertador. Diria perigosamente autoritário. Em breve o Estado se converte em nova religião, rival da primeira.
Foi o que aconteceu na União Soviética: em 1927, a XV Convenção do Partido Comunista deu início ao combate anti-árvore de Natal, um símbolo cristão. Dois anos depois, a semana judaico-cristã de sete dias foi substituída por uma semana sem sábado nem domingo, com feriados móveis, que durou até 1940. Mas em 1935 foi instituída uma Festa do Abeto, a celebrar em 1 de Janeiro. A Praça Vermelha de Moscovo recebeu então uma bela árvore, decorada com bolas vermelhas e com os ícones da nova religião: a foice e o martelo.
Mais pobres sem o Menino
A polémica dos presépios na escola requer uma séria reflexão sobre a secularização e sobre as suas dinâmicas. Toda a história do Ocidente e da sua vida social, os seus costumes e critérios morais tem as suas raízes fundadas não no tal conto de fadas, mas no cristianismo, que por sua vez assimilou o legado greco-romano. Acolher a multiculturalidade dos povos não se faz dissimulando quem somos, cancelando a nossa identidade, ou despojando-nos da nossa memória. Que convívio seria esse com o Outro? Seremos um dia impedidos de apreciar o Requiem de Mozart ou o Messias de Haendel por ser música religiosa?
Uma escola é lugar de transmissão da cultura às novas gerações. Há muito que elas, as novas gerações, têm as maiores dificuldades em ler um fresco de Giotto, entender os mosaicos de Ravenna, interpretar imagens e expressões de origem bíblica, ou escutar um Requiem… porque a história do cristianismo é cada vez mais distante. Mas é claro que isso empobrece a nossa inteligência e a nossa capacidade de “sentido”. Sem o Menino, ficamos todos mais pobres. A escola também.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.