Entre o Natal e a Epifania

Gosto de forma particular do dia 26 de dezembro. Sempre me recordo, mesmo em criança, do sabor especial deste dia. Como se depois da espera, chegasse enfim o tempo de uma outra alegria, aquela marcada pela serenidade e pela contemplação.

Gosto de forma particular do dia 26 de dezembro. Sempre me recordo, mesmo em criança, do sabor especial deste dia. Como se depois da espera, da expetativa, da excitação, da surpresa, da alegria esfuziante da noite de Natal, chegasse enfim o tempo de uma outra alegria, aquela marcada pela serenidade e pela contemplação.

Todos os anos tenho a esperança de um advento mais tranquilo, com mais tempo de oração e em que consiga passar incólume pela agitação das ruas, das lojas, dos sons, das luzes. Em vão. O alvoroço contamina-me, o barulho inunda-me, as iluminações toldam-me o olhar. Sem que consiga perceber o porquê, acabo sempre por ter um prazo de trabalho antes do final do ano que é preciso cumprir e que me obriga a trabalho adicional. Por mais que planeie, há sempre uma compra de última hora que escapou e me faz colidir com a multidão. E o advento acaba por ser uma corrida, sempre em aceleração crescente, para chegar à meta: o dia de Natal.

Felizmente chega o dia 26 de dezembro. E o dia de Natal de meta transforma-se em rampa de lançamento. Lançamento para este tempo precioso entre o Natal e a Epifania. Vem então o silêncio. Dias em que não há tarefas por realizar. Dias em que a mesa continua posta sem que seja preciso cozinhar. Dias em que o telefone se apazigua. Dias em que finalmente é possível a contemplação do presépio. Olhar o Deus Menino e ficar serenamente a maravilhar-se com o mistério de um Deus tão frágil que veio encontrar-se connosco. Por vezes sinto este tempo, como aquele dia em que regressamos do hospital para casa com uma nova vida, com um filho recém-nascido nos braços. Há algo de extraordinário e de mágico nesse momento (sobretudo se não for o primeiro filho e conseguirmos apreciar o momento sem a ansiedade que advém da inexperiência em parentalidade!). Na nova vida que trazemos nos braços; também ela frágil, dependente, incompreensível; encerra-se uma promessa, um mistério, uma chama de amor e eternidade. Assim é também neste tempo em que nos deixamos desassombrar por um Jesus recém-nascido.

Gosto de ler durante o advento com os meus filhos uma história de Natal. Depois de vários anos na companhia do Cavaleiro de Dinamarca, achei que era tempo de mudar e fui buscar à mesma coleção de Sophia de Mello Breyner “Os Três Reis do Oriente”. O sucesso da escolha junto do meu filho de nove anos não foi enorme… Muitas descrições, palavras difíceis e tantas páginas sem que os reis sem ponham efetivamente a caminho…! Mas eu, que tendo já lido há muitos anos este livro não guardava grandes memórias, fiquei presa, maravilhada, interpelada pela inquietação profunda que colocou, primeiro à procura e depois a caminho, Gaspar, Melchior, Baltasar. Quem colocou este livro numa coleção infantil? A sua beleza, profundidade, intensidade fazem dele um livro, como afinal todos os de Sophia, propício para todas as gerações e um companheiro de excelência para este tempo que atravessamos até à Epifania.

Depois de uma interrupção pré-natalícia, retomo nestes dias a leitura de “Os Três Reis do Oriente” com o meu filho mais novo. Certa de que, se passámos a meta do Natal sem tempo de perceber como nem porquê; ainda vamos agora a tempo. Pois é-nos oferecido um tempo, este tempo, para seguirmos a estrela e deixarmos que Deus se manifeste nas nossas vidas.

 

“Naquela noite, o rei Baltasar, depois de a Lua ter desaparecido atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse:

                  – Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?

A estrela ergueu-se muito devagar sobre o Céu, a Oriente. O seu movimento era quase impercetível. Parecia estar muito perto da terra. Deslizava em silêncio sem que nem uma folha se agitasse. Vinha desde sempre. Mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria, a substância imortal da alegria.

E Baltasar reconheceu-a logo porque ela não podia ser de outra maneira.”

Sophia de Mello Breyner Andresen

 

Fotografia de Anete Lusina – Pexels

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.