Entre a sede e o “enoughness”

A sede é o caminho, o itinerário. O “enoughness” são pequenos oásis por onde podemos fazer passar o nosso caminho. Lugar onde podemos parar para descansar o olhar, os pés e matar, ainda que de forma fugaz, a sede que sempre nos habita.

A primeira vez que me cruzei com o conceito de “enoughness” foi num encontro organizado em Lisboa, pela Fundação Fé e Cooperação (FEC) e pela Associação Casa Velha com o jesuíta Pedro Walpole – Coordenador do EcoJesuit e há várias décadas a viver com comunidades indígenas nas Filipinas em Pulagiyen. Nessa conferência abordava-se o tema da conversão ecológica e da transformação social e o conceito de “enoughness”(numa tradução aproximada viver com sentido de suficiência) foi apresentado como uma forma de pensar, sentir e concretizar o cuidado da Casa Comum discernindo opções individuais e coletivas quanto a políticas, estratégias, comportamentos individuais e alterações de padrões de consumo. Logo nesse momento, e pela forma como as questões e interpelações sobre o “enoughness” nas nossas vidas foi colocada por Pedro Walpole[1] intuí que o conceito era bem mais largo e profundo do que meramente material ou económico e que poderia ser transposto para outras dimensões da nossa vida (afetiva, familiar, profissional, espiritual…).

De facto, também na vida espiritual tantas vezes engrenamos em padrões de “consumo espiritual” procurando mais livros, mais conferências e oradores, mais técnicas de oração, mais retiros, mais podcasts esquecendo que tudo nos foi já dado na pessoa e na vida de Jesus. Esquecendo que basta procurar esse tempo de encontro. Esquecendo que já dispomos dos meios para a oração aqui e agora. Esquecendo que centrar no “enoughness” nos abre espaços interiores de paz, silêncio, sentido/propósito ao contrário de uma procura desenfreada que tenta compreender todos os porquês, esforça-se por ler e interpretar constantemente os sinais de Deus ou ainda se ativa num “sobrediscernimento” relativo a cada passo ou acontecimento na nossa vida. Colocar o “enoughness” no centro da oração estabelece também uma ponte quase imediata com a gratidão evidenciando o tanto bem recebido em cada dia; mostrando que os talentos que temos são suficientes para a nossa missão; clarificando que as pessoas que nos foram confiadas, com as suas qualidades e fragilidades, são mesmos aquelas que somos chamadas a cuidar. A Cantata BWV82 de Sebastian Bach intitulada Ich habe genug (numa tradução livre, Tenho o suficiente) inspira-se no momento da apresentação de Jesus no templo e no encontro com o velho Simeão traduzindo de forma muito bela este sentimento profundo e consolador de que, tendo encontrado Jesus, se tem o suficiente. A letra retoma por várias vezes o mote “Ich habe genug” explicitando que tendo visto, tendo encontrado, tendo pegado ao colo Jesus, o coração já de mais nada precisa, pois, a alegria e a fé são suficientes. Ouvir esta Cantata é sem dúvida uma forma maravilhosa de rezar e procurar o que basta nas nossas vidas.

De facto, também na vida espiritual tantas vezes engrenamos em padrões de “consumo espiritual” procurando mais livros, mais conferências e oradores, mais técnicas de oração, mais retiros, mais podcasts esquecendo que tudo nos foi já dado na pessoa e na vida de Jesus.

Mas será assim tão simples permanecer no “enoughness”? Naturalmente que não. A sede é a nossa condição humana e um lugar de excelência para o encontro com o Senhor. A sede é desejo que nos atravessa e nunca se sacia e sobre o qual o cardeal Tolentino de Mendonça, de forma sublime, nos convida a meditar e rezar no seu livro “Elogio da sede”. A sede faz-nos permanecer em caminho, a viver dentro de uma busca permanente, numa tensão que nos desinstala e nos faz chegar mais longe. A sede é o caminho, o itinerário. O “enoughness” são pequenos oásis por onde podemos fazer passar o nosso caminho. Lugar onde podemos parar para descansar o olhar, os pés e matar, ainda que de forma fugaz e transitória, a sede que sempre nos habita. Voltando às palavras de Pedro Walpole “Enoughness” is freeing and with it comes a sense of belonging, rather than being owned by the world. Then we can have time for simple things like enjoying creation.”

 

[1] Algumas dessas questões e mais enquadramento podem ser encontradas neste artigo https://www.scu.edu/ic/media–publications/explore-journal/spring-2018-stories/not-a-roadmap-but-a-trail-environmental-reconciliation-with-the-commons.html

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.