Empatia

Desconfio verdadeiramente que andamos a sofrer de uma grave falta de empatia. Deixámos de ter a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro e de partilhar a sua dor, o seu sofrimento, as suas angústias e os seus dilemas.

Empatia (do grego empátheia-as, paixão)
substantivo feminino

Forma de identificação intelectual ou afectiva de um sujeito com uma pessoa, uma ideia ou uma coisa

As emoções quanto a este tema em particular ressurgiram com a estreia de Spotlight, no início de 2016, o filme protagonizado por Mark Ruffalo que conta a história da equipa de jornalistas de investigação do The Boston Globe que, em 2002, publicou o resultado de muitos meses de trabalho sobre o abuso de crianças por padres católicos na diocese de Boston, ao longo de vários anos.

No ano seguinte, em 2017, surgiu o movimento #metoo, em que várias mulheres – muitas delas figuras públicas – revelaram ter sido vítimas de assédio ou violência sexual durante a sua vida, e sobretudo em ambiente profissional. Nomes poderosos da indústria cinematográfica saltaram para as manchetes dos jornais e revistas em todo o mundo, com muitos, demasiados casos de abusos sexuais a serem relatados.

Já este ano tivemos os bispos do Chile a colocar os seus lugares à disposição do Papa depois de ter sido descoberto que vários casos de abusos sexuais foram perpetrados e escondidos por membros do clero chileno. Estávamos em maio. Poucos meses depois, um relatório de um júri do estado da Pensilvânia, nos EUA, detalhava décadas de abusos de sexuais levados a cabo por sacerdotes da Igreja Católica, bem como o encobrimento por parte dos bispos que os tinham à sua responsabilidade.

Agora, mais recentemente, a polícia de Las Vegas abriu uma investigação para determinar se Cristiano Ronaldo é culpado ou inocente num caso em que está a ser acusado de ter violado uma mulher, há cerca de nove anos. O caso veio a lume no ano passado, mas só agora uma investigação mais aprofundada do jornal alemão Der Spiegel fez com que a vítima voltasse a falar e com que o caso fosse reaberto– já tinha sido denunciado na altura. Pouco antes deste caso, Portugal saiu à rua para se manifestar contra um acórdão assinado [uma vez mais] por juízes do Tribunal da Relação do Porto, onde dois homens considerados culpados por um crime de abuso sexual ficaram a cumprir pena em liberdade.

 

O que aconteceu?

De repente, parece que fomos envolvidos por uma onda de denúncias – muitas, demasiadas, vieram a provar-se verdadeiras e outras, infelizmente, fabricadas por quem se quis aproveitar do momento – envolvendo crimes de natureza sexual. Perdoem-me a franqueza mas já não era sem tempo. É certo que no meio de todo este furacão há quem esteja a sofrer por denúncias falsas. No entanto, são muito menos do que aquelas vítimas cujos testemunhos vieram a revelar-se verdadeiros, e é por isso que é deles que vamos falar. E é por isso que já não era sem tempo. Porque muitas vidas foram destruídas no processo, pessoas que nunca recuperarão e outras que lutaram durante demasiado tempo contra um estigma que afinal nunca devia ter sido seu.

Há muitas décadas, e sobretudo no seio da Igreja Católica, que se acumulam os casos de denúncias de abusos sexuais: dentro de seminários, em instituições de acolhimento, nas paróquias. Durante demasiados anos todos nós – leigos, sacerdotes, religiosos – olhámos para o lado não querendo acreditar que afinal os homens de Deus também falham. Porque isso nos coloca mais perto da nossa fragilidade, também. E porque deixa de dar à Igreja algo que temos como seguro: a superioridade moral.

E isto traz-nos vários problemas, para além dos crimes hediondos que se deram como provados. É que esses crimes foram muitas vezes encobertos por quem devia proteger as vítimas. Pior ainda: a instituição que há séculos pede para si o título de guia espiritual para milhões de pessoas em todo o mundo falhou em toda a linha. Não só porque encobriu os seus como silenciou quem os tentou denunciar. E, para mim, mais grave ainda, porque deixou totalmente desprotegidos aqueles que mais precisavam de proteção. Aqueles que Jesus mandou proteger e acolher. Aqueles que são como nós – que podíamos ser nós, os nossos irmãos, filhos, amigos.

 

Onde falhámos?

Custa-me a crer que não houve, ao longo de todos estes anos, quem fosse capaz de se colocar na pele daquelas crianças, daqueles seminaristas, daqueles fiéis. Custa-me a crer que durante todos estes anos tenhamos, todos nós, falhado em pensar durante 30 segundos “e se fosse comigo?”; “e se fosse com os meus filhos”; “e se fosse com os meus irmãos?”. Na maior parte dos casos, fingimos que não era nada connosco e continuámos na nossa vida, eventualmente afirmando que não havia qualquer razão para acusações que considerámos infundadas. Era melhor assim – era melhor não abalar o mundo como o conhecíamos porque isso nos coloca perante a angústia da incerteza e a dificuldade da decisão. Obriga-nos a pensar por nós, a sentir. E isso dói, sobretudo nestes casos, muito mais do que estamos dispostos a aguentar.

Custa-me a crer que não houve, ao longo de todos estes anos, quem fosse capaz de se colocar na pele daquelas crianças, daqueles seminaristas, daqueles fiéis. Custa-me a crer que durante todos estes anos tenhamos, todos nós, falhado em pensar durante 30 segundos “e se fosse comigo?

Com os casos de violência e assédio sexual no trabalho o caso mudou um pouco de figura: a questão passou a ser por que razão as alegadas vítimas tinham demorado tanto tempo a denunciar os casos de alegados abusos. Ou então, o que receberam em troco disso? Vi, discuti com várias pessoas que me perguntavam como é que alguém pode ser violentado sexualmente e não ir logo denunciar o caso – como se a culpa fosse sua. Não sei responder a isto porque, felizmente, nunca fui violentada sexualmente. Não sei em que estado fica uma pessoa que é obrigada a partilhar o mais íntimo de si quando não o quer fazer. Não sei o que isso nos faz à alma. Imagino, mas não sei. Sei, no entanto, que a justiça, nomeadamente a portuguesa, não me faz, enquanto vítima, acreditar no seu funcionamento. E não sei – não sei mesmo – se não pensaria duas vezes antes de denunciar alguém que poderia acabar a cumprir pena em liberdade, depois de me causar danos irreparáveis (irreparáveis!) para o resto da vida.

Não raras vezes também ouvi chamarem as vítimas que foram aparecendo de “aproveitadoras” ou ainda pior. Ressurgiram os já costumeiros preconceitos contra algumas das pessoas que denunciaram casos de alegado assédio: que se “puseram a jeito”, que “não deviam ter ido sozinhas encontrar-se com x ou y”, que “pela forma como se vestem, estavam a pedi-las”. E eu volto a perguntar se alguém de entre nós perdeu 30 segundos a pensar “e se fosse comigo, com a minha filha, com as minhas irmãs?”. Alguém tentou encontrar alguma dessas pessoas para perguntar, simplesmente, se elas precisavam de algo? Um ombro, um abraço, uma conversa? Quando surgiu, agora, o caso de Cristiano Ronaldo, voltaram a multiplicar-se as opiniões sobre a culpa que a mulher que agora o acusa – na verdade já o acusara na ocasião – teve em todo o processo: a roupa, o comportamento, a ousadia de entrar num quarto só com ele.

 

E nós, onde ficamos?

As histórias parecem todas muito diferentes, os casos muito díspares. A mim, olhar para o quadro geral ajudou-me a perceber algo que me assustou: creio, verdadeiramente, que estamos a sofrer de algo que tem levado a sociedade a polarizar-se e a zangar-se cada vez mais ao invés de unir esforços em busca de um mundo melhor. E que, inevitavelmente, também faz aparecer denúncias fraudulentas.

Desconfio verdadeiramente que andamos a sofrer de uma grave falta de empatia. Deixámos de ter a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro e de partilhar a sua dor, o seu sofrimento, as suas angústias e os seus dilemas.

Acusamos, ignoramos, rejeitamos, silenciamos e afastamo-nos como se não fôssemos, todos, responsáveis uns pelos outros. Pregamos uma liberdade que não damos ao outro, e fazemos do mundo um lugar muito mais perigoso – as recentes eleições de Trump ou Salvini são exemplo disso, a recente vitória de Jair Bolsonaro também.

Os tempos que vivemos são conturbados. São perigosos porque alimentam extremismos, são desafiantes porque nos estão a obrigar a lidar com questões que há anos nunca o seriam. Porque nos fazem questionar figuras em que sempre acreditámos, rever comportamentos, alterar formas de viver.

E por isso importa que nós, Igreja, feita de homens e mulheres que erram, saibamos parar para pensar sobre tudo isto, e para fazer urgentemente algo que desde cedo aprendemos: rezar. Para que não deixemos que nos contagie esta falta de empatia; para que não percamos a capacidade de nos colocarmos no lugar das vítimas; para que nos invada a compaixão que tanto pregamos e tantas vezes não vivemos. Acima de tudo, importa que nos esforcemos para dar sempre o benefício da dúvida, e para mostrar que o Amor e o Acolhimento são reais e podem ser encontrados por quem os procura

Acredito profundamente que, ainda que muito desafiantes, os tempos que vivemos podem ser a nossa salvação: se conseguirmos olhar para eles como oportunidade para renascer e nos tornarmos pessoas melhores. Acima de tudo, e conseguirmos praticar a empatia, como Jesus nos ensinou quando afirmou “aquele que não tiver pecado, que atire a primeira pedra”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.