Em tempos de guerra, a coragem de educar

Cientes deste paradoxo, muito humano, os educadores dignos desse nome não abdicarão do propósito de dignificação humana, porquanto ele é, tanto quanto podemos vislumbrar, a única via para a construção da paz.

Escorre sangue o céu e a terra
Ah pois por mais que seja santa
A guerra é a guerra. 

Fausto Bordalo Dias, 1982.

Fausto – Fausto Bordalo Dias – deixou-nos uma obra poética e musical ímpar, de grande elaboração e sensibilidade. É neste registo que a guerra está nos seus versos, quer nas inimagináveis crueldades que fazem jus à sua aura sinistra, quer nas inesperadas revelações de misericórdia que a tornam ainda mais obscura. “A guerra é a guerra”, cantou ele pondo um ponto final na melodia, marcação que terá encontrado na Peregrinação, livro de viagens assombrosas, publicado em 1614, depois da morte de Fernão Mendes Pinto, seu autor. Essa marcação recorda-nos que, no Oriente tal como no Ocidente, no passado tal como no presente, por toda e qualquer razão, a guerra se instala, dá tréguas e volta a instalar-se. Sendo assim, há que reconhecê-la como parte da nossa condição; a paz para sempre não passa de uma miragem.

1. O que acabo de dizer conflitua com a ideia de que a educação tem poder para superar os mais variados males da humanidade, incluindo a guerra. Immanuel Kant, nome destacado do Iluminismo, reconhecendo que a educação é o “maior e mais difícil problema que pode ser confiado ao homem”, declarou que nela “assenta o grande segredo” do seu aperfeiçoamento, cujo sentido é abandonar o que há de pior na dita condição e elevá-la ao patamar da dignidade universal. Isto, que está registado num pequeno livro de 1803, Sobre a pedagogia, vai ao encontro do que escreveu num outro pequeno livro, de 1795, A Paz Perpétua, onde afirma que a educação faz sair o homem da menoridade, ou seja, “da incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem”. E, desafia: “tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento!”, para alcançares a “autonomia da vontade” de modo a escolheres o Bem.

Sabemos que a educação – aquela pela qual os Iluministas se bateram – não permitiu concretizar este desígnio por inteiro, parecendo, certas vezes, resultar no seu contrário. Temos hoje bem claro que muitas das suas melhores promessas ficaram pelo caminho, mesmo depois de integradas em declarações de entidades internacionais como a Sociedade das Nações e a Organização das Nações Unidas, criadas na sequência das duas Grandes Guerras, para que, por via da cooperação entre os povos, “nunca mais” acontecessem tragédias semelhantes.

Immanuel Kant, nome destacado do Iluminismo, reconhecendo que a educação é o “maior e mais difícil problema que pode ser confiado ao homem”, declarou que nela “assenta o grande segredo” do seu aperfeiçoamento, cujo sentido é abandonar o que há de pior na dita condição e elevá-la ao patamar da dignidade universal.

2. Da primeira destas entidades saiu, em 1932, o pedido a Albert Einstein para dialogar com quem entendesse sobre a ameaça da guerra. Ele escolheu Sigmund Freud, a quem enviou uma carta onde perguntava: “será possível controlar a evolução mental do homem de forma a torná-lo imune às psicoses do ódio e da destruição?”. Freud, usando o mesmo meio, respondeu-lhe que o ser humano se debate entre duas tensões: uma de preservação e vida, e outra de destruição e morte. É na primeira das tensões que a sociedade se deve concentrar, valorizando a cultura e reforçando as relações entre as pessoas.

Einstein pôs a tónica na necessidade de se viver de forma “simples e calma”, pois ela “traz mais felicidade do que a procura do sucesso, num desassossego constante”; Freud defendeu que “tudo o que promove o desenvolvimento da cultura também trabalha contra a guerra”. Ambos concordaram que os elementos civilizacionais – a inscrever na educação – podem estabelecer uma ordem pacífica.

3. É ainda na música que vou buscar um exemplo desta convicção: a West-Eastern Divan Orquestra, composta por jovens músicos de países do Médio Oriente – israelitas, palestinianos e árabes – e fundada por Edward Said, professor de Literatura e crítico literário, palestiniano cristão, falecido há duas décadas, e por Daniel Barenboim, pianista e maestro judeu, primeiro cidadão israelo-palestiniano. Defendendo que fazer algo de edificante em conjunto enfraquece a guerra e robustece a paz, encontraram inspiração na coletânea de poemas de Goethe que, já entrado na idade, resolveu aprender persa para, através da beleza original da escrita do Oriente, ir além do Ocidente.

Disse Barenboim, em 2006, sobre a “República Independente e Soberana do Divã Ocidental-Oriental”, como chama à orquestra: “Transformou-se na coisa mais importante da vida de Edward Said, como continua a ser a minha (…) pode não mudar o mundo, mas é um passo nessa direcção. Todos os membros desta orquestra, independentemente da sua origem, demostram uma coragem, compreensão e visão notáveis com a sua presença.”

Apesar de debilitado pela doença, não desiste de “manter vivos os ideais” que partilhou com Said, em particular neste triste momento de guerra entre a Rússia e a Ucrânia, e entre Israel e o Hamas. Tem escrito, tem falado e, sobretudo, tem dirigido concertos; em agosto próximo estará no Festival de Salzburgo, quando se comemora o quarto de século da “República”. Talvez, nessa ocasião, recorde que “um presente violento e cruel conduzirá inevitavelmente a um futuro ainda mais cruel e violento”.

4. Estas palavras constituem um forte elemento contra o desânimo que, compreensivelmente, advém da consciência de estarmos num mundo em que a desgraça parece incontrolável. Desgraça provocada não só pela guerra, no sentido estrito do termo, mas por sofisticadas lutas de poder, acumulação de riqueza, ascensão e protagonismo social.

São palavras a ter em conta pelos educadores, esperando-se que, no uso da “autonomia da vontade”, façam o que estiver ao seu alcance – ainda que julguem ser pouco ou quase nada – para inverter a crueldade e a violência de que Barenboim fala. Em especial, os professores e os diretores precisam, como diz, de ter compreensão, visão e coragem: sem estas qualidades ficarão presos a um currículo que, além de pobre e trespassado por interesses alheios à formação humana, orienta para o conformismo e estimula a competição; com elas serão levados a escolher “elementos civilizacionais” com potencial reflexivo, dissonante e consonante, desafiando os mais jovens a conhecer perspetivas alheias, a elaborar um pensamento crítico e empenhado.

Ora, um desses “elementos civilizacionais” é, sem dúvida, a Peregrinação, obra acarinhada por Fausto, na qual sobressai a descoberta dos “outros”, afinal, iguais a “nós”. Descoberta que é metaforicamente ilustrada no tema Por este rio acima (também título do álbum de 1982); “isto que é de uns/Também é de outros/não é mais nem menos”, ainda que no tema A guerra é guerra o “eu” se torne um “piloto do inferno” que assalta “Nas asas guerreiras de um anjo”.

Cientes deste paradoxo, muito humano, os educadores dignos desse nome não abdicarão do propósito de dignificação humana, porquanto ele é, tanto quanto podemos vislumbrar, a única via para a construção da paz.

 

Referências:

– Barenboim, D. (2009). Está tudo ligado: o poder da música.  Bizâncio.

– Freud, S. & Einstein, A. (2017). Porquê a guerra? Reflexões sobre o destino do mundo. Edições 70.

Nota: Este texto é uma singela homenagem a Fausto Bordalo Dias, Daniel Barenboim e Edward Said por trazerem, como tantos outros, luz ao mundo. E é dedicado a Maria Cortez e João Humberto por perceberem isto mesmo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.