Assisti há dias em direto, como muitos cidadãos norte-americanos o fizeram nessa noite, ao discurso do “Estado da União”. Este consiste num relatório, em forma de discurso, no qual o Presidente dos Estados Unidos da América apresenta ao Congresso as condições em que o país se encontra, as promessas cumpridas, as prioridades nacionais, bem como as suas propostas legislativas e políticas para os próximos tempos. Este discurso versou sobre diversos tópicos da política nacional e internacional como: economia, emprego, impostos, reforma judiciária, imigração, segurança fronteiriça (o famoso muro na fronteira), saúde, aborto e relações internacionais, entre outros. Durante o discurso, as palavras do Presidente foram sendo interrompidas por aplausos, ora dos republicanos apenas, ora de todos os presentes. E, apesar da aberta hostilidade de muitos democratas para com a figura do atual Presidente, Donald Trump conseguiu, não poucas vezes, arrancar aplausos aos seus mais aguerridos opositores.
Esta foi a primeira vez em que me detive a ouvir Trump com atenção, e o facto de o ter escutado por tão longo tempo, fez-me cair na conta de que, afinal de contas, ele não é um completo imbecil. Aliás, creio que se estivesse presente na sala do Congresso naquela noite também eu teria aplaudido Trump quando, por exemplo, defendeu a necessidade de reforma do sistema de justiça criminal e apresentou Alice Johnson, uma mulher condenada a prisão perpétua, a quem o Presidente concedera um indulto ao fim de 22 anos de prisão, e que agora colabora na reforma do sistema judiciário em curso.
Enquanto ouvia o discurso, detive-me a refletir sobre problema de colocarmos rótulos em nós mesmos e nos outros. Os rótulos distanciam-nos da realidade, impedem-nos de olhar com profundidade para os problemas e para as pessoas. No fundo desresponsabilizam-nos. Pôr a Trump o rótulo de imbecil, bronco, homem sem princípios ou fascista representa uma estratégia para evitarmos pensar com profundidade, refletir sobre o que ele representa, sobre aquilo que subjaz ao seu discurso e sobre o porquê de ter sido eleito Presidente dos EUA.
Pôr a Trump o rótulo de imbecil, bronco, homem sem princípios ou fascista representa uma estratégia para evitarmos pensar com profundidade, refletir sobre o que ele representa, sobre aquilo que subjaz ao seu discurso e sobre o porquê de ter sido eleito Presidente dos EUA.
Trump propôs-se a, como é sabido, make America great again. E, grande parte do seu discurso, consistiu em mostrar como isso está, efetivamente, a acontecer em diversas áreas. Porém, é necessário escutar com atenção o discurso até ao fim. Não obstante os pontos de consenso que mereceram aplausos generalizados, o discurso de Trump está contaminado por algo que, de um ponto de vista cristão e democrático, é perverso, perigoso e inaceitável. Trump quer fazer da América great again, é verdade, e quer o melhor que sabe para o seu país. Mas quer fazê-lo à custa da exclusão de outros, à custa de bodes expiatórios, à custa de uma cultura de perseguição e de xenofobia. Por um lado, afirma que “a América espera por um futuro em que todos possam prosperar e toda as crianças possam crescer livres da violência, da pobreza e do medo”. Mas nesse “todos” não estão certamente aqueles que – pelo direito que lhes assiste enquanto seres humanos – procuram nos EUA um refúgio para a pobreza extrema ou para a violência ou medo de que sofrem.
Por um lado, Trump reconhece que é necessário remediar a “injustiça total” que representam as “disparidades e injustiças que podem existir na condenação criminal”. Mas por outro, afirma sem pudor (nem provas!) que “ano após ano, incontáveis norte-americanos são assassinados por estrangeiros ilegais criminosos” ou que “mais nenhuma vida de um americano se pode perder porque a nossa nação falhou em controlar as suas fronteiras”.
Por um lado, diz estar do lado da vida, convida a classe política a “trabalhar em conjunto para construir uma cultura que valorize a vida inocente” e a reafirmar “uma verdade fundamental: todas as crianças – nascidas e não nascidas – são feitas à imagem sagrada de Deus”. Mas do seu conceito de vida inocente estão excluídos, à partida, aqueles que do outro lado do muro gritam por ajuda, ou as crianças inocentes, feitas à mesma imagem de Deus que as crianças americanas, mas cuja oportunidade de um futuro lhes é barrada. Mais ainda: do seu conceito de vida e dignidade da pessoa humana, estão excluídos os “imigrantes ilegais”, essa massa sem nome que parece ser a causa de todos os problemas que impedem a América de ser great again. Qualquer semelhança com outros bodes expiatórios criados ao longo da história da humanidade é pura coincidência.
(…) do seu conceito de vida e dignidade da pessoa humana, estão excluídos os “imigrantes ilegais”, essa massa sem nome que parece ser a causa de todos os problemas que impedem a América de ser great again.
Trump, infelizmente, não representa nada de novo para as nossas sociedades. O atual presidente dos EUA é simplesmente a personificação daquela dinâmica que o Papa Francisco, na Encíclica Laudato Si, chama de “excesso de antropocentrismo”, ou seja, o autorreferencialismo que tem como consequência o descarte daqueles que representam, de alguma forma, uma ameaça ao próprio poder e bem-estar, bem como um desinteresse pelo bem estar das gerações futuras e pelo ambiente. Trump, pelo menos, tem a honestidade de mostrar abertamente o que é e ao que veio. Por isso é que é importante ouvi-lo até ao fim, sem rótulos, mas com sentido crítico apurado. Não vamos nós deixar-nos levar pelo tom “conciliador” deste seu último discurso…
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.