Afectos, populismo e proximidade
O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, discursando no Parlamento do Estado do Massachusetts, nas comemorações do dia de Portugal, afirmou que a única forma de os políticos evitarem populismos é estando «perto das pessoas», que têm «nomes, caras, sonhos». Isto poderia parecer uma forma de fundamentar o epíteto «Presidente dos afectos». Com mais ou menos afectos, o ponto está no facto de a proximidade ser um tema caro à política.
Há 80 anos, o mundo assistia à expansão do III Reich. Depois da tragédia vivida, o sociólogo Zygmund Bauman tentou perceber como foi possível chegar à «solução final» e notou que se verificava uma assinalável diferença entre duas imagens sobre os judeus: o «judeu metafísico» e o «judeu do lado». O primeiro era uma imagem de judeu propagada pelo regime nazi e que era a encarnação dos perigos e asco da sociedade; o segundo, ainda numa fase inicial do processo de extermínio, era o judeu que era o vizinho do lado, presença diária no bairro, pessoa normal com quem o alemão normal convivia pacificamente. Por isso, a existência dos ghettos foi permitindo ao regime nazi construir mais eficazmente a imagem que queria daquele povo. A dissolução da proximidade social, física, espiritual levou à perda de responsabilidade pelos judeus da parte do alemão-comum. Isolar e distanciar o outro isola-nos e distancia-nos da realidade, remete-nos a um mundo que criamos na nossa cabeça.
Para nós, portugueses, não é por não vivermos a realidade do anti-semitismo que estamos imunes à falta de proximidade social. Tomando-o como um exemplo possível, o desdém com que Portugal trata o interior do país é um modo que temos de viver esta falta de proximidade.
Um país, dois discursos?
Parece paradoxal exigirmos que os países mais ricos da Europa sejam generosos com os mais pequenos e dentro do nosso rectângulo não fazermos o mesmo. Consideramos falacioso dizer que uma Alemanha forte faz a Europa forte e portanto todos os países europeus serão mais fortes. Mas não é o mesmo investir abundantemente em Lisboa e Porto, achando que os milhões de turistas que inundam insuportavelmente estas cidades vão enriquecer o país e, por isso, vão enriquecer o interior? Como podemos exigir a descentralização de Bruxelas se não o fazemos sequer com Lisboa? Como podemos querer que os grandes da Europa abdiquem de privilégios em favor dos mais pequenos, mas ao mesmo tempo deixar que Lisboa e Porto suguem as apostas ganhadoras?
Obviamente que os grandes centros urbanos, dado o seu número maior de pessoas e bens, têm necessidades a uma grande escala. Mas o ponto está justamente aqui: as lógicas meramente calculistas, as contas feitas a regra e esquadro que se critica de Bruxelas também existem à nossa proporção. Se se quer corrigir os desequilíbrios não basta fazer a política do Excel. Por exemplo: impôs-se quotas à participação de mulheres na política – uma medida que pode ser apontada como injusta, discriminatória, inferiorizante do sexo feminino. Mas a verdade é que, a pouco e pouco, vai moldando uma cultura e uma mentalidade – como todas as leis. Isto significaria, por exemplo, que a representação parlamentar dos círculos eleitorais do interior poderia ser maior do que é, e por isso justamente desproporcional, de modo que os Governos tivessem uma preocupação efectiva com este tema – quanto mais não fosse porque as preocupações do interior definiriam mais os resultados eleitorais.
Que consciência formamos?
Sem vontade política não vamos lá. Sabemos bem que quando um partido político quer levar adiante uma determinado projecto, fá-lo. Diria até que Portugal não se pode queixar de falta de partidos com as suas obsessões. Que boa obsessão seria esta do desenvolvimento regional, com políticas que fossem inteligentemente sementes fecundas de emprego e natalidade. Não se trata de construir mega infra-estruturas de grandes cidades num interior desertificado, mas sim de criar meios para que famílias encontrem motivos para se estabelecerem ali. Já assinalado o primeiro aniversário de Pedrógão Grande, o que se vai seguir na prática?
Conhecimento dos dossiers não é o mesmo que proximidade. A proximidade oferece inputs imprescindíveis. A questão dos contratos de associação dos colégios foi um exemplo disso: como se não bastasse o serviço público, gratuito, universal e distinto que era prestado, como se não bastassem os recursos económicos que eram poupados ao Estado, como se não bastasse o aligeirar do peso e omnipresença do Estado, como se não bastasse tudo isto, ainda há um argumento de valor: o papel vital que estas escolas têm no desenvolvimento regional. Ou, pondo a situação de outro modo, como a extinção destas escolas em zonas de escassos recursos, decidida a partir de um gabinete em Lisboa, conseguirá destruir as pequenas economias de tantas vilas no interior do país, e, consequentemente, desertificar cada vez mais o que não é Lisboa e Porto.
E sem nós também não vamos lá. Como é que nos informamos, como formamos a nossa consciência? Não conhecer o Portugal profundo – Portugal com tudo o que é – é condenar o nosso país a populismos internos: os populismos da pretensa rentabilidade, os populismos do cartão-de-visita do país, os populismos do que é para inglês ver, os populismos da inovação. E se a inovação fosse o desenvolvimento regional e a aposta na coesão nacional? O distanciamento físico e afectivo não nos ajuda a compreender aquilo que é diferente de nós. Não conhecer o Portugal para além dos nossos circuitos é condená-lo à irrelevância, ao desinteresse. A distância despersonaliza o outro, torna-o abstracto, e isso desumaniza-nos a nós. Por isso, enquanto cidadãos temos esta possibilidade e dever de sermos agentes políticos, conhecendo o país que temos e somos. Não queremos decisões políticas tomadas só a partir de gabinetes em Lisboa, tal como não se conhece um país viajando pelo Google Maps. Se isto não é política, então que coisa é a política?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.