A palavra dogma, como todas as palavras, a bem dizer, carrega consigo uma carga forte e múltiplas abordagens. As palavras, neste tema com em tantos outros, são sempre tentativas, aproximações… São importantes (as palavras), mas é bom estarmos conscientes da precariedade do artesanato léxico.
Na sua raiz etimológica grega, que não é necessariamente a mais relevante, a palavra dogma remete-nos para uma crença, uma opinião ou mesmo uma aparência. Em religião, e no caso católico, em particular, o dogma assume um lugar mais intenso e afirmativo, mesmo assim não isento de ambiguidades. São entendidos como dogmas as “verdades de fé” estruturais, intrinsecamente imutáveis mas que foram sendo desbravadas e explicitadas ao longo do tempo na história e na tradição da Igreja. Existe, portanto, na sua génese, um traço de dinamismo retroativo, desde logo, na própria edificação da dogmática, que pode ser igualmente emprestado ao presente e ao futuro. É certo que os dogmas não são opiniões teológicas pessoais e são para ser assumidos (principalmente vividos…) pelos crentes católicos, mas a dogmática só na aparência se identifica com rigidez. Rahner vai talvez ainda mais longe quanto a este radical dinamismo dizendo que uma definição dogmática é não só um resultado ou uma conclusão que oferece precisão e clareza mas é principalmente um ponto de partida que tenta ‘dizer’ o inefável.
A analogia com que mais simpatizo para os dogmas é equipará-los a bóias. Neste cenário, a vida seria uma navegação em mar aberto e, por vezes, é preciso bóias para a nossa “salvação”. Há várias bóias a que podemos recorrer. Acreditamos na sua existência, mas é admissível que nos socorramos em conformidade com o nosso estilo e com as nossas necessidades. A dimensão comunitária, já que em Igreja não se aponta à salvação individual mas à salvação de todos (ou melhor ainda, à salvação de Deus), também pode estar presente nesta analogia já que será possível, desejável e agregador, que muitos de nós nos agarremos à mesma bóia.
Arriscaria escrever que há umas bóias mais relevantes que outras, pelo menos em certas fases da vida pessoal, comunitária e da própria história da humanidade e da Igreja. E, convém dizer, há uma bóia primeira, talvez a maior, talvez a mais importante de toda a história da salvação. Essa bóia pode traduzir-se no dogma dos dogmas: “Deus é Amor”. Todos os outros pilares dogmáticos daqui bebem.
Esta bóia de salvação é uma assunção que alguns de nós entendem assumir sem discussão, como bóia mas quase como “amarra”. É uma prisão escolhida e, paradoxalmente, uma porta de liberdade. Se tenho fé, é porque me foi oferecida a possibilidade de viver apoiado num pressuposto assumido de que Deus existe e é um Deus de amor, de relação. Não quero, deliberadamente, navegar sem esta bóia e este dogma, nas entrelinhas de todos os outros, confere-me liberdade. É a vida e não propriamente a moral, que me convida a esta crença.
Os católicos declaram este dogma basilar no credo que celebram em comunidade, quando dizem “creio em Deus Pai todo poderoso…”. Este Pai (o que é relatado no abraço do filho pródigo) é o próprio amor. Por motivos pedagógicos e para evitar equívocos, confesso que preferia um ajuste semântico-litúrgico no credo, dizendo, antes, “creio em Deus Pai todo amoroso…”.
Uma das linhas de corte colocada em cima da mesa quando se fala de ciência e religião é a questão do dogma. O argumentário de certo ateísmo de contexto científico é o de que a ciência, ao contrário da religião, não se baseia em dogmas mas antes num dinamismo que a tudo se abre e que tudo discute. No seu olhar metodológico, estamos de acordo que a ciência se move num questionamento intrínseco e até num dinamismo de tentativa de falsificação constante das teorias vigentes. Mas no seu essencial, convém dizer, a ciência carece também dos seus “dogmas” de partida. O químico e filósofo Michael Polanyi convida-nos a tomar nota da necessidade daquilo a que chama uma “rede fiduciária” de partida no construto científico, chamando à atenção de que tem que existir uma confiança intrínseca de partida, em certo sentido inquestionável, quando se faz ciência. Numa visão mais histórico-crítico-filosófica podem apontar-se três pilares (dogmas?) para a ciência, o ontológico, o epistemológico e o ético, que se podem reproduzir nesta tríplice afirmação: “a realidade existe, é possível conhecê-la e é bom saber como funciona”.
Num plano diferente estão certas linhas (dogmáticas…) cientificistas. O cientificismo carateriza-se por uma inspiração intelectual de sobrevalorização da ciência e do seu papel social e civilizacional. Não se trata de entender que a ciência é relevante, a vários níveis, para a evolução da humanidade (nisso estamos todos de acordo). É ir um pouco mais além e entender, fomentar e militar a ideia de que a ciência é a melhor via para progredir – a expressão “a melhor” é o busílis. Duas importantes referências contemporâneas para este cientificismo são, no plano filosófico, Daniel Dennett e, no plano prático (por via da Biologia e do evolucionismo), Richard Dawkins.
O mais irónico na “pureza antidogmática” de certa postura cientificista é que há uma aparente tolerância com a diversidade de ideias, a surpresa da natureza e a abertura ao mundo tal qual ele é. Neste sentido, a ciência cientificista, embora em plano de superioridade, dialoga com a cultura e com outros saberes, acomodando a racionalidade artística e outras áreas do conhecimento. Mas tal generosidade tem pelo menos um limite óbvio, que é em si próprio um dogma e que ignora liminarmente a racionalidade teológica: não há espaço para o diálogo com a religião, tida apenas como um inimigo a (com)bater.
Do meu lado, sem complexos, assumo os meus dogmas, que são os dogmas trazidos no barco da tradição da Igreja, vividos, ditos e reditos no dinamismo das palavras, preservando a sua essência basilar. Por algum motivo, foco-me no dogma principal. Adquiri um vício orante pessoal, que me recoloca no cerne cristão: sempre que invoco a omnipotência divina acrescento, para não esquecer, “Deus omnipotente… no amor”. Posto isto, com os outros, com a realidade, com o mundo e com a ciência, todos os diálogos e possibilidades são viáveis e desejáveis. Agostinho sintetizou-o bem em pouquíssimas palavras: “ama e faz o que quiseres”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.