As nossas relações estão profundamente marcadas por uma visão retributiva que domina o mundo. O “olho por olho, dente por dente”, ou o “cá se fazem, cá se pagam”, ou ainda o “amor com amor se paga”, estão enraizados na nossa maneira de nos relacionarmos com os outros e, certamente, condicionam toda a nossa forma de estar e ser.
O nosso olhar que reclama por justiça sobre o mundo está permanentemente em busca do equilíbrio entre o deve e o haver, entre a responsabilidade e a retribuição, entre a ação e o seu reconhecimento. Esperamos sempre que a justiça retributiva atue. Que os maus atos sejam punidos e que os bons atos sejam recompensados.
Todos os que se esforçam no trabalho esperam um pagamento justo pelo seu empenho. Todos os que compram alguma coisa esperam que o produto corresponda ao valor pago. Todos os que estudam arduamente esperam que a nota final corresponda ao fruto do seu esforço. Todos os que amam desejam ser amados.
Quando tal não sucede, o sofrimento é imediato. O sentido de perda, de injustiça, de abandono, de traição, de desconfiança, de mal estar, imediatamente vêm à tona da vida. Parece que algo na ordem natural e expectável de uma relação, qualquer que ela seja, foi quebrado, invertido, frustrado.
Isto deve-se antes de mais porque somos auto-referenciados. Tudo é sempre apreendido do ponto de vista pessoal. Ninguém pode viver e estar no mundo sem ser a partir do seu ponto de vista, mesmo que se esforce muito em colocar-se no lugar do outro. A injustiça para com os que nos são mais próximos é dura, mas não há como a injustiça que nos afeta pessoalmente para nos ferir de morte.
Depois, a nossa auto-referência leva-nos inevitavelmente à comparação, à imitação, ao querermos ter acesso ao que os outros também têm. Desse modo, calibramos o nosso sentido de justiça retributiva, mesmo que não seja pelos padrões do bem maior. Nesta permanente comparação, os desvios naquilo que seria expectável receber, por paralelo aos que estão em condições semelhantes, parecem definir o sucesso ou o insucesso de uma ação, de um percurso, ou mesmo de uma vida.
O nosso olhar que reclama por justiça sobre o mundo está permanentemente em busca do equilíbrio entre o deve e o haver, entre a responsabilidade e a retribuição, entre a ação e o seu reconhecimento. Esperamos sempre que a justiça retributiva atue.
À partida poderia parecer que nada disto é aplicável a uma vida de fé, centrada em Deus, em que se tenta viver de forma equilibrada todas as relações. A verdade é que a nossa essência não é diferente na relação com Deus, ou com os outros, ou connosco mesmos. Há assim algumas coisas que nos dão jeito perceber:
a) O amor é gratuito, mas não deixa de exigir uma reciprocidade. Para haver desenvolvimento do amor, este tem de ser retributivo, não no sentido interesseiro, ou egocentrista, mas numa dança inevitável de troca de dons entre pessoas que se amam entre si. Diz Sto. Inácio nos Exercícios Espirituais: “(…) o amor consiste na comunicação reciproca. A saber, em dar e comunicar a pessoa que ama à pessoa amada o que tem, ou do que tem ou pode; e, vice-versa, a pessoa que é amada à pessoa que ama; de maneira que, se um tem ciência, a dê ao que a não tem, e do mesmo modo quanto a honras ou riquezas; e assim em tudo reciprocamente, um ao outro.” [EE 231]. Ou seja, o amor para ser verdadeiramente amoroso tem de ser recíproco, desenvolve-se a partir de uma doação daquilo que se tem, recebendo daquilo que não se tem. A reciprocidade não é uma exigência do próprio amor, mas de uma relação que se quer desenvolver. Se uma relação é unilateral, em que é sempre o mesmo lado a dar e o mesmo outro lado a receber, todos percebemos que não tem um futuro promissor. Não porque essa dádiva não seja amor, mas porque sem reciprocidade estagna e não evolui. Há um desgaste no não reconhecimento do amor. Cansamo-nos e desistimos de investir nessa relação.
b) O amor exige reciprocidade, mas isso não significa simetria. Apesar de ser necessária uma reciprocidade, esta não tem (e se calhar até nem deve) ser simétrica, uma vez que somos todos diferentes e temos coisas diferentes para dar e precisamos de receber as que não temos. A assimetria faz parte da relação (amorosa) reciproca. Se o amor exigisse a simetria de reciprocidade, a nossa relação com Deus, desequilibrada à partida, estaria condenada ao fracasso, pois mesmo que a nossa entrega a Ele fosse total, nunca chegaríamos a poder pagar tão grande débito amoroso. Na relação de um casal, provavelmente também isso se verifica, sobretudo porque nalguns tempos um dos seus membros tem de dar mais que receber. Ou numa relação de amizade, ou profissional…
Ao assumir esta realidade podemos então perceber que o viver e o salvar-nos, não tem a ver com o mérito pessoal, porque em ultima análise, mesmo sendo santo, ninguém merece ser amado ou salvo. O sucesso e o insucesso passam a ter outra medida. É esse o milagre da transformação do nosso olhar: saber que mesmo não merecendo, a vida em amor e a consequente salvação são dom gratuito que vem de Deus. E assim, podemos sentir-nos verdadeiramente amados por Ele, que nunca deixa de nos amar por não retribuirmos. Acolhendo esta desproporção não podemos senão, na nossa humilde e incapaz fragilidade, tentar responder amorosamente a Deus, através da pessoal doação ao próximo, imitando a Deus na maneira como Ele se doa a cada um de nós.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.