Robert Nozick, no seu Anarchy, State and Utopia, confronta-nos com um dilema a que chama “máquina das experiências” O que faríamos, pergunta Nozick, caso tivéssemos a possibilidade de usar, por tempo indeterminado e sem quaisquer efeitos colaterais, uma máquina ultra-realista que simula os melhores prazeres da vida? Nozick argumenta que, se apenas procurássemos a nossa própria gratificação e felicidade, não teríamos motivos para não utilizar a máquina. Porém, e como a vida não é uma aventura só e apenas hedonista, a maior parte de nós diria que não à realização de uma experiência deste tipo. Há, para além da própria gratificação e felicidade, toda uma componente humana na vida que urge compreender e valorizar.
O mundo ocidental foi capaz de dar passos gigantes, a ponto de as gerações mais recentes viverem num período em que não conseguem sequer imaginar o que é uma guerra, e o seu efeito devastador. Isso traz-nos algo de um valor incalculável – a liberdade. De nascer, de crescer, de ser. O que quisermos, quando quisermos, da forma que quisermos, onde quisermos. Não há barreiras, não há fronteiras – mas essa liberdade não significa fazermos tudo o que quisermos, de forma inconsequente.
Muito se discute, e bem, o papel do Estado Social, suas limitações, suas ineficiências. Mas, ainda antes dessa discussão, deveríamos discutir qual o nosso papel, enquanto seres humanos, na sociedade em que vivemos, sociedade essa que é muito mais frágil do que muitas vezes nos apercebemos. A maior parte de nós luta para, diariamente, se manter à tona de água. Temos ¼ da nossa população em Portugal a viver em risco de pobreza ou exclusão social (cerca de 2.6 milhões de pessoas, segundo o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento do INE – um número que aumenta para cerca de 45% se excluirmos as prestações sociais).
Acredito que a experiência humana é muito como uma rede. Que cada um de nós é um elo nessa rede e que ela se vai tornando cada vez maior, à medida que crescemos, com as pessoas que vão entrando na nossa vida. Cada uma dessas pessoas, cada ligação que temos, é um elo dessa rede. Uns mais apertados, outros mais frouxos. Mas um elo, ainda assim. E, de uma forma ou de outra, esses elos estão todos interligados. Num qualquer tropeção da vida, a estrutura abana – mas, se esses elos estão no local onde devem estar, ela não se desintegra. Quando confrontados com os números acima, porém, percebemos que há imensos elos inexistentes ou ineficazes, o que atira uma fatia enorme da população para uma situação dramática e para a qual não existe uma solução única e imediata.
Não só isso, mas temos uma abordagem quase que punitiva para com esta fatia da população, que passa quase automaticamente a ser vista como indesejável. Os do bairro, os drogados, os do RSI, como se este estrato da sociedade fosse diferente, como se nada tivéssemos que ver com aquilo. Mas, ao fazê-lo, ignoramos o facto de que, muitas vezes, o que nos separa desta camada de ‘indesejáveis’ é só o facto de termos nós próprios uma rede mais sólida, rede esta que faz com que não nos afundemos num dos muitos tropeções da vida.
O caminho que percorremos, em larga escala, não depende de nós. Depende de muitas condições pré-existentes, de estruturas que já estão no sítio antes da nossa chegada. Podemos sentir que todos temos opções, mas as opções só são uma realidade para quem sente que as tem. E estas diferenças na sociedade deveriam, acima de tudo, ser um motivo de união, não de competição.
Sem cair em exageros Kantianos sobre o que é a moralidade e qual o nosso papel, o que se exige é que se pense na sociedade como um todo, não apenas como uma coleção de partes. Que não se pense na nossa felicidade individual a qualquer custo. Esta perda do que Putnam chamou de “capital social” não se resume apenas à quebra de relações entre pessoas. Estamos mais conectados e curiosamente mais distantes, sim. Mas, mais do que o contacto físico, perde-se o calor, perde-se a empatia, acumulando-se o cinzentismo, o rancor, tudo o que temos de negativo. Vamos, nas sociedades mais numerosas e cosmopolitas de sempre, perdendo a nossa humanidade.
A vida será árdua e fará, como diz Hemingway, com que percamos o “the very good and the very gentle and the very brave”. A vida irá quebrar a maior parte de nós. E isso, mais uma vez, deveria ser algo que nos aproxima. É nessa fragilidade que nos encontraremos e a mudança começará quando, de forma constante e assertiva, formos melhores uns para os outros. Quando praticarmos a caridade de forma constante, quando formos mais gentis, quando estivermos mais disponíveis. Quando escutarmos. Quando não ligarmos ao amigo médico para nos passar à frente. Ao amigo polícia para safar multas. Quando, com pequenos gestos, nos tornarmos na melhor versão de nós mesmos, todos os dias. Quando voltarmos a ser tolerantes, para nós e para com o outro.
Se pensarmos nos melhores momentos da nossa vida, do que mais nos lembramos não foi o atingir um qualquer objectivo – mas sim a partilha dessa felicidade com os que mais nos dizem. Esse é, sempre, o elemento em comum. A partilha. A cor. A alegria. E deveríamos ser capazes de partilhar o que de tão positivo há, de forma constante, com todos os membros da nossa comunidade.
Não são mudanças radicais, nem tal se exige. Temos apenas de perceber que, com umas simples palavras e uma mão amiga, poderemos transformar as vidas dos que nos rodeiam. Podemos fazer com que deixemos de olhar para os outros com desconfiança. Valorizaremos cada um de nós. Estaremos disponíveis. Acreditaremos que conseguiremos mais. Partilharemos. E só essa partilha dá sentido à nossa existência em sociedade. É aqui que começa a experiência humana. E é aqui que, mesmo com todas as opções que advém da liberdade que temos, queremos estar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.