Do desengajamento à apatia: pelo fim do ruído digital

O primeiro passo é habituarmo-nos a dizer que não. Talvez assim consigamos sair do modo de sobrevivência, e possamos gozar as nossas famílias e viver plenamente os compromissos espirituais e cívicos para com a comunidade onde nos inserimos.

Estou cansada.

Estou muito cansada.

Há anos que esta é invariavelmente a frase que respondo quando amigos próximos me perguntam como estou. Frase essa que ganhou um novo significado desde que fui mãe. Gostava de poder responder coisas diferentes, e normalmente corrijo-me de seguida: sou grata pela vida que tenho e estou também a maior parte das vezes feliz, frequentemente entusiasmada, e como tenho a sorte de gozar de boa saúde remato com um “estou ótima”. Mas todas estas coisas não se anulam e, no fundo no fundo, como dizia o Mac Miller, I’m so tired of being so tired.

Longe do que acontecia na minha juventude, não posso culpar o meu cansaço em folia e diversão. Diferentemente do que esperava que fosse a idade adulta, também não estou cansada do meu trabalho — pelo contrário, sinto que me revitalizo e rejuvenesço na minha prática profissional. Estou sim farta da enorme carga mental que se multiplica na era digital, na sobreposição das nossas vidas pessoais e profissionais, na artificialidade das necessidades e expectativas criadas pelas redes sociais, no volume estonteante de informação que precisamos de consumir para navegar a vida civilizada do século XXI. Estou cansada de me manter atualizada das notícias, de digerir dados para conseguir destrinçar o que é verdade o que é fake news e pseudo-ciência, de ouvir falar nas últimas tendências, de dominar a última tecnologia para me manter competitiva, saber quem foi o último alvo da cancel culture, e de ter de aplicar diariamente um novo léxico do politicamente correto.

Faço um levantamento da minha situação particular e vejo-me entre a espada e a parede: naturalmente não vou abdicar da minha família, não posso abdicar do meu trabalho, tão pouco abdicarei dos poucos momentos de lazer que tenho. Por exclusão de partes o que fica de lado é necessariamente a política e a civitas. Repare-se no imenso privilégio que emana do meu discurso: só alguém cujo direito a existir não seja questionado é que pode ponderar sair do debate e dizer, “não quero falar sobre isto, obrigado!” É exatamente por isto que me tento corrigir. Mas custa.

Nós, millennials, explorados, mal pagos, exaustos, desiludidos com a grandiosidade das promessas de outrora, conformados com o constante desenrasca da geração à rasca, vamos passivamente caindo num desencantamento com o estado das coisas.

Sei que não sou a única. E porque seria? Nós, millennials, explorados, mal pagos, exaustos, desiludidos com a grandiosidade das promessas de outrora, conformados com o constante desenrasca da geração à rasca, vamos passivamente caindo num desencantamento com o estado das coisas. Porque estamos demasiado cansados, e nos tem sido gravado e confirmado na alma de que nada do que façamos vai trazer mudança. Os punks dos anos 80 arrancariam cabelos das suas cristas com esta versão de anarquismo mal enjeitada: fartos do ruído das coisas que não nos acrescentam, não nos tocam, nos ocupam a cabeça e nos suam energia: não queremos saber. Só nos queremos desligar.

A própria tecnologia faz de tudo para evitar que nos rendamos de novo aos Nokia 3310: podemos apagar as notificações de todas as aplicações (recomendo vivamente que o façam) e atribuir limites às que mais usamos. Podemos ser mais criteriosos com o conteúdo que consumimos, onde nos informamos, e com quem escolhemos partilhar a vida digital. Podemos até ser radicais e recuperar a prática das nossas raízes judaico-cristãs para implementar um shabbat, um dia por semana totalmente off-line. O mercado de trabalho, por seu lado, negoceia connosco alternativas, tentando encontrar nas práticas espirituais orientais modelos que consigam tornar-nos mais presentes e produtivos. Mas nem todo o mindfulness do Mundo é capaz de criar a tão almejada paz de espírito, que só o silêncio traz.

Além do mais, aceitar que tantos de nós vivam na iminência do burn out tem repercussões sérias na saúde pública. Para começar, as taxas de suicídio que se agravaram com a pandemia são de arrepiar, e não têm cedido às campanhas de sensibilização que têm sido feitas. Estou em crer que esta degradação geral da saúde mental de uma geração é também indiretamente responsável por desfechos trágicos nas famílias, como o caso daquela criança esquecida no carro no meio de Lisboa uma tarde inteira. No rescaldo da desgraça, a opinião pública não se cansou de condenar aqueles pais. E num caso diametralmente oposto, ainda a semana passada, quando milagrosamente foi encontrado Noah, a criança de 2 anos e 8 meses que desapareceu durante mais de 30h na floresta, os mesmos comentadores de bancada não se pouparam a duras críticas. Perante dois casos de possível exaustão parental, as famílias foram crucificadas por não cumprirem com as exigências que lhes são impostas. Mas não será que falhámos todos, enquanto sociedade?

Este ritmo louco de crescente (des)informação, de demandas e solicitações, está longe de funcionar. E muitos de nós fartam-se mesmo e dizem: basta! Arrancamos a ficha, despedimo-nos dos nossos empregos de escritório, fazemos as malas e vamos rumo ao campo e ao sossego mental.

Assistimos por isso a dois movimentos de rotura intrinsecamente ligados: o êxodo tecnológico e o êxodo cívico.

Assistimos por isso a dois movimentos de rotura intrinsecamente ligados: o êxodo tecnológico e o êxodo cívico. O primeiro seduz pela sua linha estética do slow living, está em linha com o revivalismo do naturalismo, promove a desconexão digital e pede que nos conectemos de facto. O segundo é menos instagramável, e vai do absentismo eleitoral, passa pela deficitária falta de representação na minha faixa etária (se bem que neste ponto a culpa não é só nossa, mas deixemos este assunto para outras núpcias), e culmina na crescente iliteracia política das gerações mais novas. Se o êxodo tecnológico é louvável e aplaudido frequentemente, o êxodo cívico corrompe e apodrece a democracia pelas suas bases. Se é verdade que o êxodo tecnológico tem as suas virtudes, é também por causa dele e no cruzamento com o desengajamento político que temos taxas cada vez maiores e mais preocupantes de ignorância quanto a cultura geral e noções básicas de ciência, com as consequências nefastas que temos assistido nos movimentos anti-vaxxers antes e durante a pandemia, desconfiança das autoridades públicas, e um sentimento de raiva mal dirigida às instituições, que pode provocar o caos e a rotura.

Engane-se quem acha que o alheamento total é menos radical que o consumo de estupefacientes: tanto o scrolling incessante, como o consumo desenfreado, e as suas alternativas (os êxodos tecnológico e cívico), no seu extremo, são formas de pura alienação. Ficam apenas melhor na fotografia. A erosão da democracia participativa culmina na apatia generalizada, e a este ritmo, o definhar da democracia prenuncia uma morte silenciosa.

Não dá para tudo: a nossa energia mental e emocional, a capacidade de absorção de informação e conexão digital, é (muito, muito) limitada — infinitamente mais escassa do que pensamos. Acossados, empobrecidos, desmotivados, e com cargas de trabalho muito superiores ao que a nossa fisiologia suporta, precisamos de criar momentos de pausa, de introspeção e reflexão, tempos de ida ao deserto, para que consigamos continuar presentes no resto das nossas vidas. Não pode ser que para que não nos sintamos permanentemente cansados tenhamos de fazer um opting out total. O primeiro passo é habituarmo-nos a dizer que não. Talvez assim consigamos sair do modo de sobrevivência, e possamos gozar as nossas famílias e viver plenamente os compromissos espirituais e cívicos para com a comunidade onde nos inserimos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.