Ontem de manhã saí cedinho de casa. Era noite adentrada no escuro que prometia aguentar-se ainda por umas horas. Saí ensonado, mas alegre com aquela sensação de que ia ao encontro do meu Amigo. Algo muito importante me arrancava da cama animado, apesar das poucas horas de sono. O ar fresco da noite entrava vigoroso pelas narinas.
Celebramos nestes dias a semana dos seminários e, como é hábito na diocese do Algarve, cada comunidade paroquial tem um tempo específico de adoração do Santíssimo Sacramento em lausperene. Calhava àquela hora a nossa vez.
Chegado à igreja de noite, já lá se encontravam outros amigos de Jesus a cuidar de tudo o necessário para este tempo de encontro com Ele. Colocámo-nos diante do Senhor que se faz pão, alimento que se expõe e aniquila para nos dar a vida. Adorámos este mistério.
E vieram-me à oração a Simone, a Nadine e o Vincent. Há seis dias encontraram-se de manhã na sua igreja local para rezar ao nosso Deus. Traziam as suas vidas para serem colocadas nas Suas mãos. Não sabiam ainda que seria de forma tão radical e abrupta. Entrou na igreja um homem armado do seu deus. Gritou alto Allahu akbar (Deus é grande, Deus é o maior) e degolando cada um deles tirou-lhes a vida.
Ali está Ele, na eucaristia, diante de nós, pequeno, vulnerável, manipulável a negar a afirmação. É essa a sua grandeza.
Este homem, ou um outro qualquer com o mesmo estilo de ideias tolas, podia ter entrado na igreja em que estávamos a rezar ao nosso Deus em Portimão e podia ter gritado da mesma forma que Deus é grande e poderia até ter morto mais gente. Parece que desta feita o Céu ainda vai ter de esperar por nós. Ele não apareceu. Não foi ainda a nossa vez. Graças a Deus, que é pequeno.
O que leva alguém a cometer tal loucura? A afirmação de que Deus é grande? Ali está Ele, na eucaristia, diante de nós, pequeno, vulnerável, manipulável a negar a afirmação. É essa a sua grandeza.
Dizemo-nos pacíficos e cheios de fé, mas esquecemo-nos de que estamos permanentemente em luta, ou mesmo em guerra aberta, contra aquilo que Deus é. Não queremos abdicar da imagem falsa que temos de Deus e parece que não podemos deixá-Lo ser o Deus que tem de ser, porque o é. Deus é o Deus que é. Não o Deus que tenho na cabeça.
Esse é o primeiro e talvez único pecado da humanidade: não deixando que Deus o possa ser, rapidamente Lhe queremos usurpar o lugar que só a Si pertence. E damo-nos ao desvario de nos julgarmos os senhores da vida e da morte legitimados por um deus que é apenas uma auto-projecção de uma rebeldia latente que nos corre nas veias.
Não é necessário olho de falcão para encontrar a tendência tanto em políticos, como em empresários, ou operários, ou advogados, ou médicos, ou até padres…
Esse é o início de todas as mortes. Começamos por assassinar Deus (já Nietzsche afirmava “gloriosamente” que “Deus está morto. Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós!”). Nem nos apercebemos que se Ele morre em nós, nós mortos estamos. Morremos também. Depois, já mortos, tratamos de matar as vidas dos que nos rodeiam. E para isso nem sequer é preciso degolar ninguém.
Procurar os porquês para o terrorismo e o medo que se instala é colocar a resposta na busca de culpados, de responsáveis, de alguém a ser punido e corrigido. E seria fácil encontrá-los. Todos os que têm um discurso que olha mais à diferença do que àquilo em que somos iguais, que afirma constantemente a fraqueza do outro e a própria superioridade. Que aponta o dedo mais aos outros do que a si mesmo. Que se acha convencido da sua pretensa pureza e de que à sua volta só há sujeira. Não é necessário olho de falcão para encontrar a tendência tanto em políticos, como em empresários, ou operários, ou advogados, ou médicos, ou até padres…
Talvez o caminho a tomar não seja o da humanidade resvalante, que usa a boca apenas para exaltação de uma auto-referenciação. Há que dizer como Deus. Deus bendiz: diz bem. Todos nós já fizemos a experiência de mudar de opinião sobre uma pessoa a partir do que nos dizem dela. Para o bem e para o mal. Se bendisséssemos em vez de maldizer, talvez o preconceito em relação a outros fosse muito menor. Provavelmente teríamos muito melhor vontade na ajuda ao próximo. E certamente haveria muito mais encontro na convivência.
Por isso é tão importante adorar a Deus. Para O ouvir dizer e aprender d’Ele como falar.
Começámos poucos, a adoração ontem em Portimão. Quando três horas depois terminámos a oração, a igreja que tinha estado cheia voltava a esvaziar-se. Cada um voltou à sua vida, ao seu trabalho, à sua missão. Mas de lição aprendida: Deus é grande. E por isso se faz pequeno.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.