Hoje começo por escrever que sou gorda, e sempre fui gorda. É o que é: está para mim em pé de igualdade com o facto de ser morena, ter 1,58, e calçar 37. Ainda assim esta é uma apresentação que me custa fazer porque ao longo de toda a minha vida este singelo facto pareceu suscitar as mais fortes emoções a quem me rodeava: vergonha (a minha Mãe, que interiormente sempre teve vergonha de ter filhas gordas numa família em que se vive especialmente o culto da magreza), culpa (o meu Pai, que sempre sentiu que a sua carga genética era a principal responsável), indignação e raiva (a minha Avó, frustrada por não poder controlar o meu peso), espanto (se eu tivesse uma moeda por cada vez que ouvi “nunca diria que eras gorda/baixa pela forma como escreves”, seria igualmente gorda… mas mais rica), admiração (“tens imensa confiança!”, a frase mais repetida por outras raparigas, tanto gordas como magras, que ficavam espantadas por não deixar que este facto definisse quem sou). Ainda assim, durante toda a vida senti que se passava algo horrível comigo — não por ter excesso de peso, mas por não achar que isso fosse especialmente relevante ou interessante, enquanto as pessoas à minha volta pareciam viver obcecadas com o meu corpo.
Apesar de ter crescido, de vez em quando ainda sou apanhada de surpresa, como quando uma amiga próxima me pergunta porque é que eu treino todos os dias “sem ver resultados” (vulgo, sem me tornar magra). Ou quando, por acaso, ponho alguma coisa que envolva desporto nas redes sociais, e algum conhecido se sente na liberdade de me “encorajar”. Parece que à superfície, e apesar de me sentir muito mais atleta do que gorda, as pessoas não conseguem ver para lá do estereótipo: mais uma (gorda!) desesperada por emagrecer.
Contudo, o body positivity cai na mesma armadilha do que a nossa sociedade.
Serviu esta parte introdutória para dizer que, tal como todas as pessoas, principalmente as mulheres, especialmente as gordas, fui condicionada a pensar no corpo desde muito cedo. Não é que eu própria não tenha alguma gordofobia interiorizada. Que tenho. Nem que me possa comparar com pessoas a quem lhes são negados cuidados de saúde, ou discriminadas nos transportes, ou impedidas de adquirir vestuário nas lojas normais, por causa do peso.
Sendo pouco ou muito gorda, esta conversa do corpo que surgiu nos últimos anos é uma que já a oiço há quase 3 décadas. Enquanto feminista, senti-me na obrigação de escutar. Achei que nela encontraria validação para os sentimentos que sempre tive para com o meu corpo e os corpos das outras pessoas. Mas mais uma vez, ouvi discursos que não me faziam sentido. Não me levem a mal: o movimento do body positivity trouxe muitas coisas boas. Para começar, da monotonia estética dos anos 90 e dos noughties finalmente começamos a ter alguma verdadeira diversidade nos média (em termos étnicos, de capacidade, de género, e estéticos) e sinto que mais e mais quase todas as crianças conseguem ir vendo representações com que se identifiquem nos anúncios e nos filmes. A diversidade tem esta função política importante, mas mesmo em termos puramente estéticos (e lúdicos, e de entretenimento) é altamente refrescante. De seguida, a aceitação dos corpos fez com que muitas pessoas que foram educadas a sentir que não mereciam ocupar espaço finalmente pudessem respirar fundo e participar com confiança na vida pública. O body positivity salvou vidas. E este facto em si mesmo faz com que me seja difícil criticá-lo.
Contudo, o body positivity cai na mesma armadilha do que a nossa sociedade. Por um lado, temos um culto do corpo permanente e perversivo, em que o corpo-estético na sua forma ideal e mutável é desejado a todo o custo. O movimento body positive tenta alargar o ideal estético e dizer que todos os corpos são válidos (que são!) e igualmente merecedores de apreciação. Debaixo destas palavras oiço que todos os corpos são igualmente merecedores de objetificação. A alternativa naïve pseudo-espiritual, por seu lado, nega totalmente a relevância do corpo, porque o que importa é o interior. Nenhuma destas me parece certa.
Que discurso então devemos ter, connosco mesmos e com os nossos filhos? Na saúde pública revejo-me na linha da Health at Every Size (HAES), e em termos filosóficos na body neutrality. É tirânico presumir que todos devemos adorar tudo acerca dos nossos corpos, principalmente quando eles nos falham.
Foi o nosso corpo que se formou dentro das nossas mães, foi o nosso corpo que ao contemplar o rosto dos nossos pais nos fez amar e sentir amados, é ele que respira, que se move. Nós e/no nosso corpo, a rir e a chorar as alegrias e as tristezas da nossa história conjunta.
É inegável que todos temos corpos. E este é um facto a ser exultado e celebrado. Porque os nossos corpos são o veículo com o qual experimentamos toda a vida: todas as sensações de prazer, de satisfação, de sofrimento e dor. Toda a informação que apreendemos, fazemo-lo pelos sentidos. Todos os raciocínios e emoções têm uma base sensorial sobre a qual operam. Foi o nosso corpo que se formou dentro das nossas mães, foi o nosso corpo que ao contemplar o rosto dos nossos pais nos fez amar e sentir amados, é ele que respira, que se move. Nós e/no nosso corpo, a rir e a chorar as alegrias e as tristezas da nossa história conjunta. A cansarmo-nos, e a descansar. A caminhar pela vida fora. A adormecer e acordar, até ao último sono. Isto faz dos nossos corpos merecedores do maior respeito e admiração.
Ao mesmo tempo, os corpos têm de ser postos no seu lugar. Uma teoria funcional do corpo (como por exemplo propugnam as Professoras Kite, no seu livro, more than a body) conclui que o corpo é um instrumento, e não um ornamento. Este pensamento é libertador, mas pode ser redutor. Para além de negar o valor estético intrínseco de todos os corpos (apesar de este valor não estar diretamente relacionado com a sua funcionalidade, caso contrário entraríamos num ableísmo inaceitável), para quem é crente fomos criados à imagem e semelhança do Criador: o que necessariamente impõe uma dignidade ao corpo que escapa ao nível da mera função. Todos os corpos merecem ter os maiores cuidados de saúde, ter um léxico sensorial alargado, conhecer o maior prazer possível, e não sentir dor. Merecem mover-se, nutrir-se, descansar. Em terceiro lugar, é difícil resolver a tensão existencialista — onde é que o eu começa e o corpo acaba —, porque apesar de tudo eu sou o meu corpo e ao mesmo tempo sou mais que o meu corpo.
Onde é que isso nos deixa? Não sei. Tento olhar com carinho para o meu corpo e vê-lo, sem me perder numa relação dissociativa. Quero que a minha filha veja em mim uma mulher que gosta do seu corpo e que gosta de se cuidar, mas que não se esquece de que o corpo é principalmente um veículo com o qual vivemos a vida: se por um lado exige todos os cuidados possíveis justamente por isso, por outro tem valor intrínseco por ser único, nosso, e nele culmina a nossa natureza dual, tão divina enquanto terrena. É ótimo termos corpos, termos corpos diferentes, e melhor ainda quando funcionam bem, com saúde, e experimentamos mais prazer que dor, mais alegria que sofrimento. Cabe-nos a nós cuidar deles, olhar para o nosso corpo e dos outros com carinho, mas também saber que nunca os corpos podem ser fins em si mesmos. Mais que tudo, queria que nos deixassem em paz. Queria que gostar dos nossos próprios corpos, e existir num tipo de corpo específico, deixasse de ser um ato político radical, e passasse a ser visto como algo natural e desapaixonado. Olhemos para os corpos por aquilo que eles nos dão: a possibilidade de viver uma vida plena.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.