Se alguém decidisse fazer um exercício, académico ou não, questionando os 308 presidentes de câmara portugueses, perguntando-lhes se alguma vez tiveram de tomar decisões e alocar recursos e despesa municipal para assegurar funções, competências ou “tarefas”/serviços que deviam ter sido assegurados pela administração direta do Estado (“Estado Central”), arriscar-me-ia a dizer que pelo menos 99% deles, em algum momento, reconheceria que o teve de fazer.
Serve isto para dizer que descentralizar é criar condições para que decisões e respostas às necessidades dos territórios e consequentemente das Pessoas, sejam legal e financeiramente tomadas em maior proximidade com as populações locais, valorizando ainda mais o papel do Poder Local. É este o espírito do princípio da subsidiariedade, de que as decisões são mais ágeis, mais céleres e melhores, até em termos financeiros, quando tomadas a um nível mais próximo das populações.
Ou seja, descentralizar com sentido é permitir que, com controlo orçamental e financeiro (gastando praticamente o mesmo como se a despesa fosse assumida pela Administração Central), seja possível melhorar a qualidade dos serviços públicos prestados à população. Se a segunda premissa não for possível de concretizar, então mais valerá não existir descentralização, a tal que foi apelidada pelo Sr. Primeiro-Ministro como a “pedra angular da reforma do Estado”.
Se todos os autarcas já têm, hodiernamente, de assumir competências que não são legalmente suas, nem dos órgãos municipais para poder cumprir a sua missão de serviço público ao dispor das populações, qual é então a resistência de alguns autarcas a este processo de descentralização em curso, que na prática se propõe transferir competências (na sua vertente mais robusta) nas áreas da saúde e educação na gestão e manutenção de infraestruturas (centros de saúde e escolas) e na gestão dos recursos humanos operacionais?
descentralizar com sentido é permitir que, com controlo orçamental e financeiro (gastando praticamente o mesmo como se a despesa fosse assumida pela Administração Central), seja possível melhorar a qualidade dos serviços públicos prestados à população.
A primeira resistência (legítima, diga-se) pode ter que ver com questões orçamentais/financeiras. Efetivamente, a Administração Central tem de garantir os meios financeiros ou as receitas para fazer face a pelo menos igual nível de despesa transferida. A segunda resistência – menos legítima, no nosso ponto de vista – poderá prender-se com um certo hábito português a que se chama “sacudir a água do capote”: tal como estão as coisas, ao não solucionar um problema, o autarca pode justificar-se dizendo que não é competência do município. Desta maneira parece ficar ilibado de toda e qualquer responsabilidade, não se compromete, e passa a bola para o “monstro” Estado Central.
É importante por isso consolidar, e rapidamente finalizar, o processo de descentralização em curso. Conforme referido pelo Sr. Presidente da República: “[n]uma crise sobre a descentralização, muito prolongada, perdem todos… avançar para a regionalização com uma descentralização manca é correr um risco enorme de os portugueses não entenderem o passo que se pretende dar.”
Finalizar o processo de descentralização em curso, com sucesso, permitirá dar outros passos subsequentes, não só na questão da regionalização, mas na aspiração legítima de um novo processo de descentralização que crie uma matriz mais efetiva de um verdadeiro “Governo Local”. Os desafios do “envelhecimento” em matéria de recursos humanos e a excessiva burocratização e estaticidade do Estado Central, aliada à dinâmica cada vez mais acelerada das matérias da inovação, dinamismo económico, atratividade de investimento, gestão territorial, adaptação às alterações climáticas etc., exigem de facto um “efetivo pacote de descentralização” que possa transferir verdadeiros poderes de planeamento e gestão do território para os municípios, atualmente espartilhados por entidades como CCDR’s, APA, DRAP, entre outros, consagrando um efetivo “Governo Local”.
Um técnico a partir da Rua Alexandre Herculano em Lisboa (com o devido respeito), ter mais poder decisório sobre a atratividade de determinado investimento para um território municipal do que um autarca democraticamente eleito, é algo que não parece fazer qualquer sentido. Tenho esperança de que, concluindo-se, com sucesso, o processo de descentralização em curso se criem condições de confiança para mais descentralização e para o processo de regionalização ir fazendo o seu caminho.
Posturas de abandono da Associação Nacional de Municípios não favorecem este caminho. E é muito estranho que quem encetou esta rotura seja precisamente quem mais reivindica a regionalização e afirme a necessidade do combate ao centralismo de Lisboa.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.