Das (in)certezas

Continua a ficar muito por fazer: porque nos esquecemos de que a oração age em conjunto e não sozinha. Somos nós os agentes e únicos garantes de uma mudança que precisamos.

Sempre que mudamos de ano há como que uma revigorada vontade de fazer diferente em cada um de nós. A chegada de 2020, depois de uma década particularmente difícil em termos económicos e sociais, trouxe consigo uma aura de esperança e de otimismo que precisávamos de sentir para conseguir continuar a caminhar – afinal, entre 2010 e 2020 assistimos ao difícil reconstruir de um País em austeridade; à queda de bancos e banqueiros; à morte de génios artísticos; a mares de migrantes mortos; a vulcões em erupção que deixaram milhares de aviões em terra; a ciclones, terramotos, tufões, incêndios indomáveis aquém e além fronteiras; à ascensão da extrema-direita na Europa e a figuras como Donald Trump e Jair Bolsonaro a ocupar as presidências de países que têm o seu peso no mundo.

Vimos o melhor e o pior da humanidade em ataques racistas e xenófobos, em mão criminosa e em esquemas de corrupção, em ondas de solidariedade imparáveis, em movimentos que galgaram mares como o #Metoo ou o ‘Salvem o planeta’ de Greta Thunberg.

E entretanto 2020 chegou e percebemos que afinal não trouxe nada de novo: primeiro vieram as revelações do Consórcio Internacional de Jornalistas sobre os negócios de Isabel dos Santos – as consequências ainda estão para vir, e não deverão ser boas; logo depois tivemos o novo corona vírus que fechou cidades na China, já matou mais de mil e setecentas pessoas e nos deixa a todos a olhar de lado quando alguém tosse; o Reino Unido efetivou a sua saída da União Europeia depois de uma relação de quase 30 anos; milhares de migrantes continuam à espera que a vida lhes sorria um pouco depois de terem conseguido asilo em países da Europa que, entretanto, os deixaram praticamente sozinhos; os desastres naturais sucedem-se, com cheias na Europa e seca em África – ou em parte dela; na outra parte, inundações; o processo de impeachment de Donald Trump caiu por terra mesmo que pareça mais do que óbvio que o presidente dos EUA abusou do seu poder; Portugal viveu (e bem) uma onda de indignação pela forma como o jogador do Futebol Clube do Porto foi tratado, ao seu apupado com insultos racistas durante um jogo com o Vitória de Guimarães, num episódio que mostra como o racismo e a xenofobia são tão estruturais que nem conseguimos dar-nos conta da sua gravidade. E só estamos a meio de fevereiro!

Nestas alturas, dizemos muitas vezes em tom de brincadeira que só nos resta rezar – na certeza de que havemos de encontrar uma solução para todos os problemas do mundo, ou de que eles, por algum ato de magia, se resolvem sozinhos. Como se a oração, por si, tivesse o poder para nos transformar, para tornar o mundo num lugar muito melhor do que aquele que o encontramos, todos os dias.

É nossa responsabilidade, enquanto cristãos, termos a certeza de que somos muito pouco, de que não somos ninguém sem todas as outras pessoas que nos habitam a realidade. E com elas, partilhem ou não da nossa fé e das nossas (in)certezas inabaláveis, ganhar coragem para enfrentar o que o mundo hoje nos oferece.

Mas enquanto essa certeza nos fortifica, nos prende os pés à terra, e nos faz avançar sem medos a cada nascer do sol, a verdade é que continua a ficar muito por fazer: porque nos esquecemos de que a oração age em conjunto e não sozinha. Somos nós os agentes e únicos garantes de uma mudança que precisamos, que queremos célere.

É nossa responsabilidade não entrar a pés juntos no debate sobre a legalização da eutanásia (outro tema novamente em cima da mesa), esquecendo-nos de ouvir quem está do outro lado, ainda que não concordemos com a outra visão; é nossa responsabilidade não deixar passar impune aquele comentário maldoso ao nosso colega do lado; é nossa responsabilidade ajudar quem nos pede ajuda, mesmo quando temos tanto mais que fazer; é nossa responsabilidade sermos honestos no que fazemos, com as pessoas que amamos, com aqueles com quem nos cruzamos todos os dias; é nossa responsabilidade ter mais atenção ao que consumimos, ao que comemos, à roupa que usamos, à forma como ensinamos o consumo aos nossos filhos; é nossa responsabilidade exigir mais de quem nos representa no Parlamento para que não tenhamos que começar anos civis a ouvir falar do aumento de tempo de espera nas urgências, de mortes evitáveis com mais médicos nos hospitais, de jovens sem esperança que se transformam em sem-abrigo porque perderam tudo, de idosos que morrem sozinhos, de frio, em casas esquecidas por todos.

É nossa responsabilidade, enquanto cristãos, termos a certeza de que somos muito pouco, de que não somos ninguém sem todas as outras pessoas que nos habitam a realidade. E com elas, partilhem ou não da nossa fé e das nossas (in)certezas inabaláveis, ganhar coragem para enfrentar o que o mundo hoje nos oferece.

Na certeza, essa sim, de que o caminho não é fácil, mas que feito em conjunto pode tornar-se menos penoso. Porque há uma certeza – talvez a única – que tenho: somos nós que fazemos do lugar que habitamos um lugar melhor. Todos os dias.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.