Após as últimas eleições legislativas, o nosso Parlamento tornou-se mais diversificado, com a inédita eleição de dez partidos, três dos quais pela primeira vez. A pluralidade é sempre bem-vinda em democracia. Uma sociedade plural, onde há espaço para a expressão das diferenças, é sempre mais rica e mais fecunda do que uma sociedade uniformizada, monótona ou onde só alguns grupos têm voz. A nova composição do Parlamento espelha uma maior diversidade nas escolhas que os 55% de eleitores que se dirigiram às urnas fizeram. Podemos dizer, portanto, que Portugal é hoje um país mais plural, e isso é bom. Mas a maior pluralidade, como dizia na semana passada José Bravo Nico, exigirá novos desafios e compromissos.
Para além dos desafios à governação, o aumento do espectro político do nosso Parlamento exigirá cidadãos mais preparados e informados, capazes de prestar atenção às subtilezas das propostas oferecidas. Se, por um lado, a pluralidade é sempre bem-vinda, por outro isso não significa que temos de aceitar de forma acrítica tudo o que é dito, ou que todas as propostas, porque inovadoras, são sinal de progresso civilizacional ou contribuem do mesmo modo para a promoção do ser humano e do bem comum.
Uma sociedade é democraticamente adulta quando permite que diferentes vozes e sensibilidades se possam manifestar. Esta diversidade, no entanto, conhece alguns limites (respeito pelos direitos fundamentais e pelos direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição) que, no caso dos partidos políticos, compete aos tribunais analisar.
Isto torna-se particularmente importante para o cidadão católico, que tem uma séria obrigação de formar a sua consciência de acordo com os valores evangélicos e a doutrina da Igreja, para poder discernir quais aquelas propostas que mais contribuem para a promoção desses valores. No seu discernimento, precisa de estar particularmente atento “às aparências de bem”, ou seja, àquelas propostas que possam à primeira vista ser compatíveis com o Evangelho mas estão cheias de subtilezas que contrariam o espírito do mesmo.
Diante de posições tão diversas, é importante que os cidadãos se informem e se prepararem para saber discernir quais aquelas que mais se adequam à sua visão de sociedade.
Para ilustrar o que signifique “aparência de bem”, vejamos dois exemplos – que não são certamente únicos – a partir de alguns aspetos dos programas políticos de dois novos partidos presentes na Assembleia da República: o partido Livre e o partido Chega.
Se um católico ler a declaração de princípios do Livre, conclui certamente de que tem muitos pontos em comum com este partido: a universalidade dos direitos humanos, a liberdade, a igualdade de oportunidades e na distribuição dos bens e recursos, a solidariedade entendida como fraternidade, a preocupação ecológica e a ideia de uma Europa unida. No entanto, olhando mais atentamente ao programa eleitoral deste partido, deparamo-nos com uma medida que, parecendo apenas “só mais uma medida”, mostra como o Livre entende a liberdade religiosa. Na sua proposta 4.10, este partido compromete-se a “retirar a disciplina de Educação Moral e Religiosa do currículo” das escolas públicas, “no respeito do princípio da laicidade da escola pública, constitucionalmente consagrado”. Ora, embora na sua declaração de princípios este partido comungue de alguns valores cristãos, numa análise mais detalhada percebemos que a sua conceção de liberdade e laicidade parece não ser assim tão compatível com o pensamento cristão. Será que ao excluir a possibilidade de crianças e adolescentes poderem receber formação ética e cultural, no espírito da sua própria confissão religiosa, na escola pública, o Livre está a promover a liberdade religiosa consagrada na Constituição? Será que a laicidade deve ser entendida em termos da completa exclusão das religiões da educação pública? A esta proposta se juntam outras que não deixarão de levantar questões, na medida em que manifestam um modo de compreender a pessoa e a sociedade distante da proposta cristã. A este respeito, basta dar como exemplo a proposta para que se aprove a eutanásia (proposta 7.6), ou a visão do papel centralizador do Estado em todas as matérias relevantes no que toca à Educação, excluindo a possibilidade de uma colaboração subsidiária com outras entidades da sociedade civil, nomeadamente do terceiro setor.
Na declaração de princípios do partido Chega encontramos também alguns pontos em comum com a visão cristã da sociedade: a proteção da dignidade da pessoa humana e a proteção da liberdade contra o totalitarismo, a rejeição de qualquer forma de xenofobia, racismo ou qualquer forma de discriminação. Reconhecendo a neutralidade do Estado em questões religiosas, este partido reconhece e respeita ainda “o papel decisivo desempenhado pela Igreja Católica na estruturação da civilização europeia e na História de Portugal”. Mas, numa análise mais profunda das propostas deste partido, nomeadamente das suas “70 medidas para reerguer Portugal”, podemos perguntar-nos: será que a nossa prioridade política como cristãos é ver o papel da Igreja reconhecido por qualquer partido político ou pelo Estado? Será que a “introdução da prisão perpétua” (n. 21) ou a “castração química como forma de punição de agressores sexuais” (n. 19) ou a “retirada de todos os privilégios nas prisões (salários, apoios sociais, bolsas de estudo,) para prisioneiros condenados por terrorismo e quaisquer imigrantes ilegais” (n. 23) são compatíveis com o humanismo cristão que tem permeado as nossas leis penais ao longo dos últimos séculos? Será que as políticas de “Relações Internacionais e Imigração” (nn. 56-64) ou a “eliminação do acesso gratuito a serviços de saúde para imigrantes ilegais” (n. 51) preconizadas por este partido são compatíveis com as virtudes cristãs da hospitalidade e do cuidado e amor ao próximo, que tanto caracterizam a nossa cultura e a nossa história?
Estes dois exemplos servem apenas para recordar como a democracia plural exige que sejamos cidadãos bem preparados e informados. É importante escutarmos o outro, debatermos ideias, conhecer bem as propostas de todos os intervenientes políticos. Mas, como cristãos, é nosso dever confrontarmos cada uma dessas propostas com os critérios do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja, para separarmos o que é trigo do que é joio. Sobretudo, importa não nos deixarmos enganar pelas aparências de bem que, da esquerda à direita, vão espreitando por aí.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.