Estou certa de que esta referência ao historiador romano Salústio (86-54 a.C.) despertará memórias e reflexões enriquecedoras, particularmente em quem – como eu – o estudou há muitos anos na Universidade. Entre estes, será inevitável a nostalgia da esperança vibrante e ingénua com que nesses tempos se contemplava o futuro. Alguns, então pouco motivados pelas vetustas guerras e conspirações de sociopatas com nomes “femininos” – e menos ainda pela estrutura “granítica” da língua –, poderão evocar as dificuldades que a concisão e os arcaísmos das monografias salustianas podiam causar. Outros relembrarão o prazer tanto estético quanto intelectual de as traduzir e de apreciar esse estilo inovador, coerente com a mensagem saudosista do autor. Mas mesmo aqueles que não se depararam com os originais latinos reconhecem, decerto, a importância da reflexão política de Salústio e a sua contínua actualidade e pertinência.
Salústio dedicou-se à história, e em particular à monografia, com o enquadramento do otium cum dignitate. Impunha-se-lhe a necessidade de expor a forma como a corrupção moral dos líderes apodrecera as instituições da república e, em última análise, a própria sociedade. Esta preocupação cívica tem raízes profundas na identidade romana.
Ao contrário do que sucede na nossa sociedade ávida de bem-estar e politicamente correcta, os romanos valorizaram e verbalizaram sempre a dimensão moral, tanto na vida pública como na privada, e persistiram na idealização nostálgica dos tempos morigerados do passado, coincidentes com os primeiros séculos do regime republicano. Significativamente, honestus deriva de honor, assumindo a ligação indissolúvel da virtude pessoal com o reconhecimento público. A relativa “pobreza” económica do período áureo da república favorecia a simplicidade dos costumes e o respeito pelos valores tradicionais; o senado e as magistraturas, apesar das graduais conquistas, eram ainda capazes de corresponder às necessidades internas e externas. Contudo, a expansão territorial do século II a. C. trouxe territórios e riquezas ingentes, e com eles exemplos sedutores de luxo e de autocracia, que a inevitável crise de crescimento das instituições tornava ainda mais irresistíveis. É neste contexto que surge o primeiro grande desafio aos fundamentos da moral e da república: o carismático, talentoso e sobretudo ambicioso príncipe africano Jugurta. Durante anos, que culminaram numa longa e desprestigiante guerra (entre 111 e 105 a. C.), este sobrinho bastardo de um dos maiores aliados de Roma – Micipsa, rei da Numídia, espécie de protectorado romano situado nas actuais Argélia e Tunísia – conseguiu, através de sucessivos subornos, eliminar os outros herdeiros do tio – um deles na própria Cidade Eterna, depois do apelo ao senado por parte da vítima –, assumir sozinho o poder e adiar por bastante tempo a derrota inevitável. As várias comissões senatoriais enviadas a arbitrar a atitude beligerante de Jugurta para com os primos e a subsequente eliminação deles, foram sendo enganadas, quando não compradas, e as punições dos crimes revelaram-se tardias ou escandalosamente lenientes. A gestão catastrófica do caso de Jugurta prejudicou seriamente a credibilidade da classe dirigente e agravou muito a instabilidade social e política de Roma.
Até onde irá o processo degenerativo de Portugal, permeável ao dinheiro de “príncipes” estrangeiros, condescendente com a corrupção interna, comprando e vendendo a poucos o que é de todos (e que todos acabamos por pagar), permissivo na aplicação da justiça (instrumentalizada pelo poder político), condicionado pela pusilanimidade corporativa dos media e amordaçado pela intolerância ideológica?
Mas o que se afigura ainda mais condenável é que a ambição sem escrúpulos, a metodologia corruptora e a certeza da impunidade tinham sido inculcadas e incentivadas em Jugurta por romanos igualmente ambiciosos, que pretendiam aproveitar-se dele para enriquecerem e conquistarem o poder. O sumo corruptor fora no início corrompido por quem soubera captar a profundidade da ambição e as inegáveis qualidades do jovem príncipe. Segundo relata Salústio, foi um nutrido grupo de oficiais que com Jugurta integravam o estado-maior de Cipião Africano Menor, durante o cerco de Numância, que o instigaram a eliminar os filhos de Micipsa e a tornar-se rei único da Numídia. Como sublinha a frase lapidar em discurso indirecto: in ipso maximam uirtutem, Romae omnia uenalia esse – “nele, o mérito era máximo, em Roma, tudo estava à venda”. Cipião, conhecedor da ganância e da sede de poder de muitos romanos, percebera a ambição de Jugurta e a sua propensão para dar presentes. Por isso, tentou explicar-lhe em segredo os riscos desses comportamentos: era preferível cultivar a amizade do povo romano em público do que em privado, e não devia persistir no hábito de distribuir dinheiro; com efeito, era perigoso comprar a poucos o que era de todos – periculose a paucis emi quod multorum esset. Apesar de caídos em saco roto, tais conselhos continuam pertinentes quase dois mil e duzentos anos depois.
Mutatis mutandis – sobretudo a beligerância externa e a brutal escalada da violência interna –, parece-me inevitável o paralelismo entre a susceptibilidade de Roma perante a ambição e a ganância dos seus líderes e a situação que vivemos nos dias de hoje, neste pequeno país adormecido no extremo ocidente do antigo império romano. Lendo em Salústio as terríveis consequências da perda do sentido dos deveres cívicos e morais, perguntamo-nos, inquietos: até onde irá o processo degenerativo de Portugal, permeável ao dinheiro de “príncipes” estrangeiros, condescendente com a corrupção interna, comprando e vendendo a poucos o que é de todos (e que todos acabamos por pagar), permissivo na aplicação da justiça (instrumentalizada pelo poder político), condicionado pela pusilanimidade corporativa dos media e amordaçado pela intolerância ideológica?
Oxalá todos lessem ou relessem Salústio…
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.