Algumas semanas atrás, o meu rotineiro e apressado processo de selecção de mercearias no hipermercado habitual foi subitamente interrompido por um discreto mas inconfundível chilreio de pássaros. Esses sons completamente inesperados pareciam brotar algures do tecto do enorme pavilhão, como se de entre as ramagens de uma frondosa árvore se tratasse. Com efeito, eram demasiado maviosos para pertencerem a um pobre bicho que um infeliz acaso aprisionara nesse aterrorizante templo consumista da sua nemesis humana. Pouco depois, a funcionária da caixa esclareceu o meu assombro: tratava-se realmente de uma gravação de sons naturais, emitida com o propósito de criar um ambiente relaxante para os clientes, tantas vezes stressados pela labuta diária. Por isso, quando dias mais tarde regressei e me sentei no bar dessa grande superfície, esteticamente encastoado na secção de bebidas espirituosas, a irrupção já não surpreendente do mesmo chilreio despertou-me outros pensamentos.
O primeiro foi precisamente a curiosa semelhança daquela cafetaria com uma clareira de floresta, ressoante de gorjeios e rodeada, não já de árvores e arbustos – cujos frutos estariam à mercê das mãos, patas e bicos dos interessados –, mas de fileiras sucessivas e onerosas de garrafas oriundas de múltiplos locais do nosso mundo globalizado. De algum modo, e ainda que com intenções comerciais, o mundo exterior era trazido para o interior graças à beleza evocativa do canto das aves; a Natureza – ou a sua aparência reduzida a um som –, era chamada para o meio do resultado do esforço humano por dominá-la em seu proveito.
Todavia, a admiração e o encanto que esses sons naturais nos despertam deixam-nos um sabor amargo. Nos ambientes predominantemente urbanos onde nos movemos, apesar dos parques, jardins e quintais, o decréscimo da presença de animais selvagens é uma evidência, e o afastamento dos ritmos da terra, uma inevitabilidade danosa. Como lembra o Papa Francisco na encíclica Laudato si, “não é conveniente para os habitantes deste planeta viver cada vez mais submersos de cimento, asfalto, vidro e metais, privados do contacto físico com a natureza.” Não podemos esquecer-nos de que “nós mesmos somos terra”, e de que, como afirmou São Francisco de Assis, “na grandeza e na beleza das criaturas contempla-se, por analogia, o seu Criador”.
As limitações à nossa liberdade provocadas pela pandemia acentuaram a sensação de que uma parte de nós está em falta; de que, constrangidos pelas obrigações diárias, estamos com fome de Natureza. A solidão imposta pelos confinamentos valorizou ainda mais a companhia dos animais, mesmo a dos pássaros citadinos que nos evitam, mas ainda assim nos reconfortam com a sua mera existência. Na verdade, até uma gravação difundida no mais inesperado dos lugares nos traz algum conforto, ao evocar o que poderemos voltar a contemplar um dia, assim tenhamos ocasião.
As limitações à nossa liberdade provocadas pela pandemia acentuaram a sensação de que uma parte de nós está em falta; de que, constrangidos pelas obrigações diárias, estamos com fome de Natureza.
O desejo de representar a Natureza, e os pássaros em particular, para deleite e consolo do espírito, não é exclusivo dos que a eles não podem aceder facilmente. Com efeito, tem sido uma constante da humanidade desde os tempos em que o nosso planeta mantinha a sua pureza original – e um gesto cheio de múltiplas simbologias. Os chilreios na cafetaria fizeram-me também recuar 2000 anos ao trazerem-me à memória um magnífico achado arqueológico da antiga Roma: as pinturas da sala de jantar subterrânea da Villa ad gallinas albas, em Prima Porta, propriedade de Lívia, a esposa do imperador Augusto.
Situada num ponto alto, sobranceiro ao Tibre, junto ao nono marco miliário da Via Flaminia, esta casa de campo, onde foi desenterrada a mais famosa estátua do imperador, estava rodeada de vegetação. Contudo, na linha da moda decorativa de uma época em que a paixão pelos jardins, trazida da zona oriental do império, dominava as elites romanas, Lívia desejou transportar a Natureza para o interior. De caminho, infundiu-lhe a simbologia de paz e tranquilidade que a propaganda do novo senhor de Roma adoptara como imagem de marca. Assim, as pinturas das paredes representam, com uma precisão extraordinária, um jardim-pomar enquadrado pelas mesmas vedações usadas no exterior, criando uma fascinante ilusão realista. À volta do omnipresente e pressagioso loureiro dos Césares – cujo rebento inicial teria sido entregue a Lívia juntamente com a galinha branca que dera nome à propriedade – misturam-se, numa aparente liberdade natural, numerosas plantas plenas de significado per se, mas cuja simultânea floração e frutificação constitui um novo símbolo. Rosas, margaridas, papoilas, violetas, crisântemos, lírios, pervincas, oleandros, murta, carvalhos, pinheiros, ciprestes, marmeleiros, medronheiros, romãzeiras – todos estão floridos, apesar de o fazerem em alturas diferentes do ano; e, no caso das árvores do pomar, exibindo ao mesmo tempo flores e frutos. É um milagre apenas possível graças à pax Augusta, que assim liga Natureza e Humanidade numa felicidade reencontrada e comum.
À volta destas plantas luxuriantes gravitam, quais abelhas, numerosas aves – como rouxinóis, cotovias, pintassilgos, pegas, pintarroxos, perdizes –, que nelas encontram alimento e aconchego. A naturalidade do seu comportamento revela da parte do pintor uma longa e precisa observação; e a presença de redes de caça e de uma gaiola com uma ave dentro recorda a sua importância na vida diária, como fontes de alimento e animais de estimação.
Na verdade, os romanos não apenas tinham o ensejo de conviver com grandes populações de aves, como se dedicavam a criá-las e até treiná-las com grande eficiência. Para além do bastante significativo nome da villa de Lívia – com origem num episódio extraordinário e auspicioso envolvendo uma galinha branca e uma águia –, muitas são as provas do lugar especial das aves no coração dos romanos. Deixando de lado a abundante decoração dos utensílios domésticos, recordem-se, entre outros, o pássaro da amada de Catulo; os rouxinóis e tordos falantes de Agripina, Britânico e Nero descritos por Plínio, o Antigo; as representações de aves de estimação em lápides de crianças; ou até o túmulo que, segundo Marcial, Telesila construiu para o seu rouxinol.
Passados vários milénios, quando somos impressionados pelos chilreios gravados que ecoam por entre as labirínticas prateleiras de um hipermercado, mais do que nunca percebemos o quanto precisamos deles bem vivos.
No mundo antigo, os pássaros e as aves em geral eram de facto uma presença constante na existência humana, assente na agricultura e por isso marcada pelo ritmo das estações. Prova fundamental é a sua presença nos relatos mitológicos gregos, simbolizando os deuses e envolvendo-se em numerosas metamorfoses, como a de Procne, Filomela e Tereu, transformados em andorinha, rouxinol e poupa. Não admira, por isso, que Aristófanes tenha escrito Os pássaros, comédia alegórica e fantástica que patenteia uma espantosa imitação do comportamentos desses animais. E que, segundo Plutarco, a primeira intervenção política do jovem Alcibíades na assembleia de Atenas – cidade conhecida pela paixão pelas lutas de galos – ficasse famosa pela fuga e subsequente recuperação da codorniz que ele trazia dentro do manto. A Atenas clássica prossegue na senda do mundo homérico, permeado por referências a pássaros, dos relatos fantásticos do mito às experiências prosaicas do quotidiano, em que avultavam as aves de rapina, ameaça para os animais domésticos e símbolo trágico dos campos de batalha. E é precisamente na Odisseia que nos aparece um episódio muito significativo, se bem que raras vezes lembrado: a estóica Penélope, angustiada pela longuíssima ausência de notícias sobre o marido e pelas pressões cada vez mais perigosas dos pretendentes, tinha como animais de estimação vinte gansos, que deambulavam pela casa livremente e lhe aliviavam o coração – as galinhas ainda não tinham feito a sua entrada triunfal na Europa. Por isso, depois de acordar aterrorizada por um pesadelo em que uma águia aniquilava as infelizes aves, ela tratou ansiosamente de encontrá-las e verificar se estavam bem.
Passados vários milénios, quando somos impressionados pelos chilreios gravados que ecoam por entre as labirínticas prateleiras de um hipermercado, mais do que nunca percebemos o quanto precisamos deles bem vivos. Deus nos ajude a conservar as aves para que a sua companhia e o seu canto suave, além de indiciarem o bem-estar da Natureza, continuem a oferecer grande divertimento e encanto aos nossos sentidos, como há séculos assinalava São João da Cruz.
A autora escreve de acordo com a antiga grafia.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.