A “mulher de César” é um paradoxo. Poucas mulheres do mundo antigo, míticas ou históricas, conquistaram uma notoriedade tão duradoura; mas também poucas, ou nenhuma outra, o conseguiram mantendo-se sem nome fora dos círculos especializados. Temos assim uma celebridade quase anónima, definida pelo nome do marido – o que, convenhamos, é particularmente discriminatório, tendo em conta o tempo em que ela viveu, marcado por mulheres poderosas, fascinantes e com nome próprio, como Aurélia, a sua sogra; Servília, o amor da vida de Júlio César; Cleópatra, outra amante do dito; e, na família do seu sedutor, Clódio, as irmãs – entre as quais a Lésbia de Catulo – e uma das esposas, a explosiva Fúlvia. Pior ainda, as outras “legítimas” de César sempre foram nomeadas: a (talvez) primeira, Cornélia, mãe de Júlia, por ser filha do político proscrito Cornélio Cina; Calpúrnia, a última, pela paciência com as infidelidades e, sobretudo, pelo empenho em evitar o magnicídio.
Aliás, nem sequer ficou absolutamente definido se ela consumou a infidelidade, ao contrário da mais famosa de todas as adúlteras da Antiguidade Clássica, Helena de Tróia. E, enquanto a criação de Homero continua a inspirar reescritas e reinterpretações, a “mulher de César” não resistiu à competição das grandes damas do seu tempo e das gerações seguintes, cheias de Lívias, Júlias, Messalinas e Agripinas. Do que Pompeia – pois é esse o seu nome – pensava, nada se sabe, e não lhe foi permitido defender-se perante a posteridade. O mais estranho é que nem sequer há certezas quanto ao que fez depois, apesar de ser aristocrata e neta de Sula. A frase assassina do ex-marido fez com que a sua existência concreta fosse escondida, como por um passe de magia, pelo véu da aparência.
Assim, a “mulher de César” saiu da alcova para o banco e passou quase em exclusivo para o universo masculino – pois ainda são sobretudo os homens quem exerce cargos de governo e gestão. E as palavras do seu carismático marido adquiriram um sentido sobretudo positivo: “Não só se deve ser honesto, como parecer honesto”.
No entanto, ao longo dos milénios, essas palavras, ligadas a uma transgressão matrimonial, tornaram-se um chavão usado para esgrimir a necessidade de manter a ética e a moralidade na vida pública, sobretudo nas areias movediças das relações de políticos com interesses económicos potencialmente corruptores. Assim, a “mulher de César” saiu da alcova para o banco e passou quase em exclusivo para o universo masculino – pois ainda são sobretudo os homens quem exerce cargos de governo e gestão. E as palavras do seu carismático marido adquiriram um sentido sobretudo positivo: “Não só se deve ser honesto, como parecer honesto”. Falar de aparências honestas no tempo em que vivemos é também paradoxal, mas não é tópico para este momento.
Pelo contrário, regressemos aos finais de 62 a.C. e recordemos a origem desta história de muita fama anónima e pouco proveito para a visada, pois tem, de facto, bastante mais que se lhe diga, e transporta lições pertinentes para o momento futebolístico-político que estamos a viver.
Conta-nos Plutarco, nas Vidas Paralelas, que o jovem espalha-brasas Clódio – na verdade Publius Claudius Pulcher, membro da grande família patrícia que participará na dinastia dos Júlios-Cláudios – estava tão desejoso de seduzir Pompeia, que decidiu correr riscos impensáveis. Como César era nesse ano o Pontifex Maximus – cujo exercício implicava uma integridade que ele não tinha, mas era também uma escolha política –, a festa exclusivamente feminina, nocturna e com rituais secretos, da Bona Dea realizava-se na sua casa. A presença de qualquer homem era um sacrilégio, potencialmente perigoso para o bem estar da Respublica, mas para Clódio importava apenas realizar os seus intentos. Assim, disfarçou-se de mulher, com a conivência de Pompeia, que era objecto da desconfiada vigilância da mãe de César. Contudo, a pressa acabou por perdê-lo: foi descoberto e o escândalo rapidamente se espalhou, não podendo ser ignorado. Por isso, César repudiou Pompeia, e Clódio, alvo da indignação sobretudo da classe dirigente, foi acusado de impiedade. Todavia, Clódio era um agitador político extremamente popular, e a pressão violenta da plebe tratou de intimidar o exercício da justiça. Ainda assim, as testemunhas confirmaram as acusações, e Cícero, pressionado ele próprio por razões pessoais e políticas, ousou testemunhar e eliminou o falso alibi alegado pelo réu. Todavia, poucos estavam à espera da reacção do marido ofendido, que afirmou em tribunal nada saber. Os juízes, não querendo desprezar as provas – e assim afrontar a opinião do senado –, mas aterrorizados pela violência dos apoiantes do réu, arranjaram uma forma de aparentar confusão na votação para justificarem a inacreditável absolvição. Por tudo isto, o facto de Júlio César ter repudiado Pompeia causou estupefacção, a que ele respondeu com a famosa frase: “Porque quero que da minha mulher nem sequer se tenha suspeita”.
Esta preocupação pelas aparências que o levou a divorciar-se tão facilmente – mesmo admitindo que se tratava de um casamento de conveniência – contrasta à primeira vista com a heróica desobediência à ordem dada pelo ditador Sula para que se divorciasse de Cornélia, bastantes anos antes. Na verdade, só a morte dela os separou, pois o jovem Júlio César, que decerto a amava, insistiu em manter publicamente a ligação aos Populares, a facção derrotada na sangrenta guerra civil, de que os já mortos Caio Mário (seu tio por afinidade) e Cornélio Cina (seu sogro) foram os líderes.
Ao tempo do escândalo da Bona Dea, Clódio, também ligado aos Populares, já era um populista com créditos firmados e milícias constituídas, pelo que se afigurava utilíssimo como homem de mão, e perigosíssimo como inimigo – como Cícero experimentou pouco depois. A imensa ambição de César e o seu brilhante calculismo político faziam com que a humilhação pessoal não o incomodasse. Importava, por isso, despachar Pompeia de forma que não beliscasse a sua relação futura com Clódio. Foi assim que César e outros políticos ambiciosos permitiram que ele, sem cumprir os requisitos legais, fosse adoptado por um plebeu, para ser eleito tribuno da plebe – cargo que conferia imunidade, poder de veto e iniciativa legislativa – e depois levar a cabo as manobras necessárias ao controlo do estado por parte do Primeiro Triunvirato. Enfim, uma troca de favores, um Do ut des profano.
Nesta história, muito mais grave do que as contradições de César em relação à esposa, é o desprezo pela justiça, deixada à mercê do terrorismo dos agitadores populistas em prol de ambições individuais; e, em última análise, a desconsideração do Estado e dos direitos e da liberdade dos cidadãos. A sensação de impunidade criada por este processo depressa redundou numa espiral de violência que ameaçava devorar os que alimentaram o monstro. Logo surgiram milícias de sentido oposto, e Clódio acabou morto numa batalha entre as duas facções em pleno centro de Roma, dez anos depois do escândalo da Bona Dea. No julgamento de Milão, o agitador responsável pelo homicídio, o seu advogado Cícero foi intimidado pela turba apoiante do morto, e tornou-se necessário usar as legiões para impor alguma ordem pública. Refém das ambições de César e Pompeio, a República não conseguiu sobreviver.
Este é um exemplo milenar de como a ambição leva a relativizações imorais, com consequências terríveis. Condescender com figuras populistas inescrupulosas apenas porque têm influência sobre a turba, quase sempre mal formada, dos seus partidários, é perigoso. Se essas figuras usam o seu cargo para usufruírem de uma certa imunidade face à justiça, ainda é pior: a mensagem transmitida quando políticos em funções apoiam alguém sob suspeita e até investigação judicial é que a justiça não importa, e que há uma para os poderosos e outra para o “pessoal menor”. Um estado sem um sistema de justiça eficaz e igual para todos arrisca o fracasso, por mais velho que seja. E é lamentável que a filiação clubística cause em muitos uma cegueira selectiva, que funciona ao contrário da imparcialidade simbolizada pelas estátuas que decoram as Domus Iustitiae. E que dizer quando os próprios juízes são agentes de corrupção atingidos por essa cegueira clubística…
Este é um exemplo milenar de como a ambição leva a relativizações imorais, com consequências terríveis. Condescender com figuras populistas inescrupulosas apenas porque têm influência sobre a turba, quase sempre mal formada, dos seus partidários, é perigoso.
Mas há ainda outro lado inquietante na milenar história da “mulher de César”: este, como os outros políticos, tinha receio de Clódio porque ele também conhecia os seus segredos, nomeadamente sobre o envolvimento na conspiração de Catilina (63-62 a.C.). Manter Clódio satisfeito era também uma forma de manter as aparências e evitar o colapso de reputações às mãos de quem nada tem a perder. E é aqui que surge a terrível dúvida: será que o empenho que hoje vemos em manter o poder de quem é já suspeito não significa um esforço desesperado de evitar que a sua queda arraste outros?
Política, justiça e futebol devem estar separados, e não apenas parecer separados, por se perceber as implicações de não esconder cumplicidades.
O trágico da situação que vivemos é que já nem sequer as aparências incomodam: os brandos costumes, a abstenção nas eleições e na vida cívica e a conivência de parte dos media criou em muitos políticos a convicção de impunidade. Políticos são comentadores de futebol, mesmo no exercício de funções parlamentares; e agora até um primeiro-ministro apoia a reeleição de um presidente envolvido em numerosos casos de corrupção, que incluem a tentativa de influência em decisões judiciais. As novas mulheres de César, e os novos Césares, já nem sentem necessidade de parecer honestos.
Quando usarmos de novo a “mulher de César” para lembrar a necessidade de não parecer mal, ou criar suspeitas nas mentes suspeitosas dos outros, recordemo-nos do que realmente está por detrás da famosa frase.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.