Da generosidade

Há uns anos trabalhei com uma pessoa que tinha uma característica que ainda hoje recordo com muitas saudades: tempo para ouvir e para responder. Qualquer pergunta que lhe fosse feita era sucedida de, pelo menos, 5 segundos de silêncio.

1.    Há uns anos trabalhei com uma pessoa que tinha uma característica que ainda hoje recordo com muitas saudades: tempo para ouvir e para responder. Qualquer pergunta que lhe fosse feita era sucedida de, pelo menos, 5 segundos de silêncio e só depois viria uma resposta, num tom calmo e sereno, como se aquela conversa fosse o único compromisso do dia. Isto valia para perguntas simples ou complexas, para tempos mais ou menos corridos, para todas as pessoas que se lhe dirigissem. Dava, a cada uma delas, aquilo que hoje é o nosso bem mais precioso: tempo. As suas palavras eram raramente iradas e nunca jocosas. Tomava cada pergunta como a pergunta mais séria que alguém lhe fazia e não descansava até ter a certeza de que a pessoa entendia cada resposta, mesmo que parecesse a coisa mais simples do mundo. Era-lhe absolutamente indiferente de onde vinha a pessoa, que formação tinha ou que passado carregava: tratava todas exatamente da mesma forma, com o mesmo sorriso e o mesmo respeito.

Penso nele, neste homem com quem tive o privilégio de trabalhar, muitas vezes durante os meus dias. Andamos numa correria tão desenfreada entre trabalho, casa, casamento, escola dos miúdos, ginásio, música, natação, jantares, festas, que cada resposta urgente se torna necessária para que não percamos mais dos que os 2 segundos que achamos que não temos a pensar nela. E se não temos tempo para abraçar os nossos filhos e o nosso marido (ou mulher) quando chegamos a casa, como temos tempo para pensar em respostas, para afastar preconceitos que de repente criámos em relação a qualquer pessoa, para nos pormos no lugar do outro?

Perdemos a capacidade de nos preocupar, de pensar em algo mais que não apenas nós e a nossa sobrevivência ao caos que é o dia-a-dia.

Desconfio de que nos últimos anos, e muito com a ajuda da Internet e das redes sociais, fomos desenvolvendo características que mudaram significativamente a forma como lidamos com os outros. Sentimo-nos próximos à distância de um ecrã, mas falha-nos a empatia – de que já falei num outro texto – que só a presença física permite. E isso depois reflete-se, inevitavelmente, no nosso comportamento. Perdemos a capacidade de nos preocupar, de pensar em algo mais que não apenas nós e a nossa sobrevivência ao caos que é o dia-a-dia. Perdemos, tendemos a perder, a capacidade de nos encantar com coisas tão simples como um pôr-do-sol que nos mostra que todo o sofrimento tem um fim ou com o marulhar das ondas que nos lembra que todos os dias, todos os momentos são oportunidade de renascimento, de corrigir o que está errado.

Desta falta de tempo que teimamos em alimentar todos os dias despertam muitos dos nossos sentimentos, digamos, menos bonitos.  “O ser humano é mauzinho até prova em contrário. Acredito que tem uma possibilidade de ser muito bom, mas tem uma parte narcisista, egocêntrica, uma ganância que se não for domesticada vai crescendo. Se não percebermos o sofrimento dos outros, se não tivermos empatia, se não valorizarmos o que temos, portanto sermos frugais, entramos em espiral”, dizia o pediatra Mário Cordeiro numa entrevista recente ao jornal i.

Na mesma ocasião, Cordeiro referiu a ausência de tempo para o aborrecimento, para as artes, para a filosofia e no final, para os outros. Tempo que nos faria pessoas menos centradas em nós, que nos permitiria perceber que somos apenas peças de uma engrenagem muito maior, que ganha sempre com a nossa capacidade de amar e perde sempre com o nosso egocentrismo. Este “ser mauzinho” que Cordeiro acredita ser inato, preocupa-me. Como é que nós, cristãos, controlamos o facto de sermos mauzinhos?

Recordo muitas vezes a passagem da Bíblia sobre Zaqueu, o publicano em casa de quem Jesus quis ficar quando passou por Jericó [1]. Num ato de generosidade plena, Jesus abraçou aquele homem cheio de falhas, e com amor transformou-o; é de generosidade também que nos fala a passagem sobre a mulher adúltera [2], tão digna de amor quanto qualquer outra pessoa; é de generosidade, naturalmente, que Jesus nos fala quando se entrega à morte sem discussão, e sem admoestar Judas Iscariotes [3]. É este exemplo que somos chamados a seguir, e aquele para o qual andamos a ter tantas dificuldades.

Ensinamos às crianças, desde pequenas, uma vida cheia de correrias e de solicitações, onde o tempo para apenas existir – e que graça é esta, a de existir! – não faz parte da agenda e o tempo para o outro não entra na equação.

Ensinamos às crianças, desde pequenas, uma vida cheia de correrias e de solicitações, onde o tempo para apenas existir – e que graça é esta, a de existir! – não faz parte da agenda e o tempo para o outro não entra na equação. Não sabemos, não queremos saber o que sente o nosso colega do lado, porque nos mostram todos os dias que “cada um sabe de si” e que temos que tirar do nosso caminho todos os que possam pôr em causa o nosso sucesso. Não gastamos tempo a perceber que, muitas vezes, os outros são parte desse nosso caminho para sermos felizes.

E assim também já não nos damos conta de como sorrimos perante o erro do outro, de como nos congratulamos com a falta de competência de alguém para desempenhar uma tarefa, de como desejamos quase sem perceber, que o outro falhe para que nós tomemos o seu lugar – ou pelo menos, para que o nosso, no mundo, não esteja ameaçado.

Nós, animais sociais, estamos a optar por viver cada vez mais sós quando séculos de História e de desenvolvimento nos mostram que somos muito melhores juntos.  Deixámos de saber dizer às pessoas que gostamos muito delas ou de algo que elas fizeram – e deixámos de saber receber elogios, que tantas vezes poderiam mudar a nossa forma de estar perante a vida. Deixámos de saber amar, porque deixámos de saber amar-nos, neste medo constante do silêncio, de nos ouvirmos, de percebermos que tanto como nós estamos a sofrer, estão a sofrer as pessoas à nossa volta, ao nosso lado. Deixámos de estender a mão porque nos ensinam, todos os dias, que o outro é o inimigo.

2. E agora vamos aos números:

Nunca antes houve tantos adolescentes a considerar normais comportamentos violentos durante o namoro [4]; nunca como agora houve tantas mortes relacionadas com casos de violência doméstica [5]; nunca antes houve uma percentagem tão grande de portugueses com depressões – ou a tomar anti-depressivos [6]. Os nossos idosos estão abandonados à sua sorte em aldeias remotas ou apartamentos esquecidos nas cidades, as nossas crianças são enfiadas durante 12 horas em escolas super-lotadas com educadores que dão o seu melhor para transformar o dia de pessoas pequeninas que precisam de amor e atenção em dias que façam sentido com o ensino de inglês e de tecnologias desde que aprendem a falar.

As mulheres sentem-se exaustas [7], os portugueses no geral sentem-se infelizes [8] – aliás, Portugal ocupa o quarto lugar entre os países menos felizes da UE. As empresas são das menos produtivas.

E a pergunta é inevitável: afinal, estamos a mudar para melhor? Quando eu era criança – e não passaram assim tantas décadas – a generalidade dos pais tinha tempo para estar em casa a contar histórias e a partilhar refeições. Ajudávamos nas tarefas domésticas, dávamos uma mãozinha ao vizinho que precisava de alguém que lhes cuidasse do cão, desdobrávamo-nos em atividades de voluntariado com crianças, adultos ou idosos. Aprendíamos que uma comunidade é um conjunto de valores partilhados, de necessidades satisfeitas por todos, de uma entreajuda conseguida porque cada um põe os seus dons ao serviços dos outros.

De cada vez que vejo os dados sobre bullying, sobre abandono de idosos em hospitais, sobre violência no namoro ou no casamento, sobre depressão, sobre infelicidade e sobre ineficiência, não tenho dúvidas de que a falta de generosidade é um importante contributo para eles.

Aprendíamos, nos recreios da escola, a brincar com todos, a proteger os mais fracos, a vencer num mundo onde não havia quem nos protegesse – aquele era o nosso mundo, e vencer nele significava crescer. Não tenho dúvidas de que essas experiências de independência e aborrecimento nos tornaram pessoas mais atentas: afinal, ou éramos atentos ao que se passava ou o nosso aborrecimento aumentava ainda mais.

De cada vez que vejo os dados sobre bullying, sobre abandono de idosos em hospitais, sobre violência no namoro ou no casamento, sobre depressão, sobre infelicidade e sobre ineficiência, não tenho dúvidas de que a falta de generosidade é um importante contributo para eles. E nós, enquanto cristãos, devíamos estar duplamente atentos nestas situações. De cada vez que tivermos aquela vontade inata de que Mário Cordeiro fala, saibamos lembrar as palavras de Jesus e o seu exemplo – que tantas vezes gostamos de puxar como medalha e esquecemos de seguir:  “Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados.  Dai, e ser-vos-á dado; boa medida, recalcada, sacudida e transbordando vos deitarão no regaço; porque com a mesma medida com que medis, vos medirão a vós” – Lc 6, 37-38.

Se todos nós formos exemplo, e se cada um de nós inspirar quem está ao nosso lado, tenho a certeza de que a solidão pode ser mitigada, a empatia recuperada e o Amor a arma maior de um mundo que infelizmente nos tem feito acreditar que somos os únicos que importam.

Partilhemos alegrias e tristezas, usemos os erros como oportunidade de aprendizagem e não como motivo de congratulação, façamos da generosidade uma prioridade. Afinal, caminhamos a passos largos para a Páscoa e é uma boa oportunidade de nos começarmos a preparar para aquele que foi o momento mais generoso de Jesus Cristo – no limite, o momento que nos faz estarmos todos reunidos sob uma mesma Igreja que chamamos de nossa.

 

[1] Lc 19, 1-10

[2] Jo 8, 1-11

[3] Lc 22, 47-51

[4] https://www.jn.pt/nacional/interior/mais-de-metade-dos-jovens-ja-sofreu-violencia-no-namoro-e-maioria-acha-natural-10575043.html

[5] https://ionline.sapo.pt/645066

[6] https://observador.pt/especiais/numero-de-portugueses-com-depressao-dispara-43-mas-consultas-ainda-sao-so-15-minutos-para-dar-medicacao/

[7] https://www.publico.pt/2019/02/12/sociedade/noticia/mulheres-portuguesas-passo-corrida-tempo-1861367#gs.OJ1X8hH9

[8] http://worldhappiness.report/ed/2018/

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.