Estamos fartos desta pandemia.
Sentimo-nos desconfortáveis em locais com muita gente. Desviamo-nos das pessoas que circulam em movimentos novos e largos.
Quando conhecemos pessoas, só podemos imaginar o seu rosto completo. Não vemos sorrisos, perdemos a compreensão de algumas palavras porque descobrimos que também líamos os lábios e não dávamos conta.
Temos de garantir o stock de máscaras em casa. Ou que as que não são descartáveis estão arejadas e lavadas.
Álcool gel quando se entra. Álcool gel quando se sai.
Seguimos diariamente os números dos infetados, dos internados, dos mortos.
Fazemos prognósticos sobre o inverno, recitamos promessas de vacinas.
Fazemos testes, esperamos resultados. Amigos positivos, familiares positivos. Com sintomas, sem sintomas.
Não abraçamos, não beijamos.
O “novo normal” é um normal pela metade. Ou menos.
Mas o “novo normal” – expressão de uma excelente nova canção de Sérgio Godinho – deu-nos também algumas coisas em dobro. Desde logo, a consciência aguda de que precisamos de arte e de cultura. Durante o confinamento, o que teria sido de nós sem música, sem livros, sem filmes, sem séries… E, agora que podemos sair, a necessidade de ir ao encontro do que nos faltou.
Durante o confinamento, o que teria sido de nós sem música, sem livros, sem filmes, sem séries… E, agora que podemos sair, a necessidade de ir ao encontro do que nos faltou.
Aconteceu recentemente ter ido a uma exposição, ao teatro e ao cinema na mesma semana. A exposição, de um belíssimo trabalho de José Pedro Croft no Convento de Santa Clara em Coimbra, recebeu, nesse sábado de chuva e Covid, 300 visitantes. Foi uma enorme surpresa para todos, incluindo para o artista, que já tinha exposto a peça em Madrid, antes da pandemia, com menos pessoas na inauguração. A peça de teatro, a meio de uma temporada de quase um mês, às 19h00 de uma quinta-feira, estava com a lotação completa, mesmo que isso seja agora metade. Um teatro de palavra, no qual durante uma hora e meia três atores encarnaram o texto do romeno Matéi Visniec “Palhaço velho, precisa-se”. Ao cinema fui a uma quarta-feira, à hora de jantar, pensando que seria a única na sala. Enganei-me… Estávamos muitos a ver “A ordem moral”, filme português de Mário Barroso sobre a vida de Maria Adelaide Coelho, filha do fundador do Diário de Notícias (filme que bem mereceria outra crónica). No meio disto tudo, por razões profissionais, tive acesso aos dados sobre o consumo de jornais online desde o início da pandemia. Sucintamente, o aumento nos principais títulos é bastante assinalável.
Consciente ou não, a necessidade de cultura aumentou. Sente-se na urgência de estarmos informados, tarefa que compete aos media nas suas várias manifestações e que parecia adormecida. Exprime-se na vontade de voltar a ser público, a ser espectador, a ser audiência, não apenas em casa mas nas casas próprias da cultura. Como quem precisa de ter sede para dar valor à água que sempre lá esteve mas que, quando falta, faz com que tudo seque.
Afinal, descobrimos à força, precisamos também de uma alma viçosa.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.