Contra os crocodilos

As virtudes de Antonino e as recomendações estóicas mostram quão deficitárias são as lideranças deste século.

“Vamos todos ficar bem”, é o voto, ilustrado por um arco-íris, que, desde o início da provação da covid-19, se repete por todo o lado. Em pessoas da minha idade, slogan e desenho evocam o saudoso anúncio “Um amanhecer diferente” da Nescafé, com a maravilhosa canção de Johnny Nash – “I can see clearly now” – a perorar esperançosamente: “Here is that rainbow I’ve been praying for/It’s gonna be a bright sunshiny day.” No entanto, não lidamos agora com uma noite angustiosa, prestes a amanhecer, nem com um aguaceiro violento, depressa enxugado pelo sol: defrontamos um inimigo desconhecido, numa corrida ombro a ombro sem termo previsível, cuja ansiada meta será o regresso à chamada normalidade anterior. Em vista das perdas humanas e da crise económica e financeira, tratar-se-á de uma vitória pírrica, que exigirá vários e dolorosos anos de recuperação.

Entretanto, a dúvida surge: vencidos o vírus e a crise, ficaremos realmente todos bem? Dificilmente, pois não estava tudo bem antes da covid-19: essa almejada “normalidade” era já disfuncional. No contexto veloz, voraz e mendaz das redes sociais, o coronavírus está a funcionar como catalisador de uma guerra cultural e política que se trava há anos, manifesta no crescente desrespeito pela verdade e pelo próximo que diariamente nos sobressalta. Como será, então, esse “normal” pós-covid? As perspetivas não são animadoras.

Há quem assinale que a relativização da verdade e a grosseria e vulgaridade do discurso público começaram com a moda do reality show. O palco dado à superficialidade ignorante e atrevida fê-la parecer aceitável; as redes sociais fizeram-na frutificar e acabaram por se tornar plataformas de assassinatos de carácter e ideologias intolerantes. Os líderes políticos e institucionais, ávidos de popularidade, têm procurado aproveitar estes novos recursos e modos de socialização: fomentam o excesso de informalidade; por vezes, são fontes de confusão e discórdia; e tendem a ser condescendentes com radicalismos perigosos. Em suma, tem-se gradualmente perdido a autoridade e a gravitas da função do estado.

Há quem assinale que a relativização da verdade e a grosseria e vulgaridade do discurso público começaram com a moda do reality show. O palco dado à superficialidade ignorante e atrevida fê-la parecer aceitável; as redes sociais fizeram-na frutificar e acabaram por se tornar plataformas de assassinatos de carácter e ideologias intolerantes.

Num recente artigo, pós-Black Lives Matter, o escritor e comediante britânico Andrew Doyle sintetizou na perfeição o estado de coisas, sublinhando o clima tóxico de censura – no-platforming – e eliminação de monumentos, produções artísticas e até da presença pública de pessoas – cancel-culture e virtue signalling –, assentes em ignorâncias, presentismos históricos e até na mera ânsia de protagonismo ou no rancor pessoal.

Este movimento inquisitorial que defende a censura e a discriminação “em prol” da diversidade, atingiu um paroxismo absurdo com a ainda vigente polémica à volta de J.K.Rowling, que já foi acusada de se ter “radicalizado online”, qual militante do Estado Islâmico. O coro imediato de condenações da autora por parte dos protagonistas dos filmes Harry Potter, que tudo lhe devem, demonstra não apenas a falta do mais mínimo esforço de pensar, mas também o reconhecimento – e consequente medo – do poder conquistado por líderes de opinião com agendas fraturantes. Como lamenta Andrew Doyle, quase todos prestam vassalagem a esta gente, demonstrando a absoluta validade de uma frase proferida por Winston Churchill – um dos mais famosos alvos da cancel-culture – no contexto da Segunda Grande Guerra: “Each one hopes that if he feeds the crocodile enough, the crocodile will eat him last. All of them hope that the storm will pass before their turn comes to be devoured.” Porém, o crocodilo come todos, até os seus acólitos, uma lição que J.K.Rowling deve ter aprendido, já que a sua longa carreira de defensora da correção política nas redes sociais de nada lhe valeu. Naturalmente, são vários os crocodilos do presente, com versões em todos os lados do espectro político. O seu poder é proporcional ao ruído que fazem e ao seu peso mediático, que nos dias de hoje favorece a wokeness “liberal”.

A polémica à volta de J.K.Rowling, incompreensível para a “maioria silenciosa” da população, mostra o quão necessárias são as lideranças, cívicas e políticas, conscientes dos seus deveres. Infelizmente, a generalidade dos media não parece compreender a gravidade de situações como esta e mantém uma atitude superficial e politicamente correta. O caso de Donald Trump é paradigmático: na sua ânsia de expor o presidente americano como o Idiot da Global Village, escapa aos media a amarga ironia de ser precisamente ele – tornado conhecido e popular pelo The Apprentice – o líder “digno” desta sociedade agónica de reality shows, twitterati e ativistas ignorantes e violentos. Não parecem também reconhecer que ele partilha, tanto com adeptos, como com muitos dos seus detractores – raras vezes expostos pelos media –, deficiências de caráter, conhecimento e comportamento, exponenciadas pela visibilidade e pelo poder de que dispõe. A sensação de desconforto e insegurança causada pelo caos e amoralidade que emanam dos Estados Unidos – outrora parceiro fundamental no equilíbrio mundial – deveria ocasionar um debate profundo sobre o papel e responsabilidade dos políticos – e de cada qual – na sociedade, e não ser disfarçada através do usual momento ridículo dos telejornais.

Vive-se com uma pressa febril, ao ritmo de impulsos e intuições sem fundamento e é essencial parar para refletir sobre o verdadeiro alcance da liberdade de cada um.

Vive-se com uma pressa febril, ao ritmo de impulsos e intuições sem fundamento e é essencial parar para refletir sobre o verdadeiro alcance da liberdade de cada um. Quem valoriza os exemplos fornecidos pela experiência histórica da humanidade, sente-se inclinado a olhar para líderes políticos do passado, de épocas em que as elites, guiadas pela Filosofia e pela Religião, dedicavam muito mais tempo à reflexão sobre si próprios e sobre as consequências do seu comportamento. E é aqui que entra o paralelo, cada vez mais necessário, com a Antiguidade Clássica – um tempo em que se podia viver mais devagar e com menos distrações, mas infelizmente já ameaçado pelo presentismo histórico.

Marco Aurélio (121 –180, imperador entre 161 e 180) é a figura que de imediato nos acode à memória como exemplo absoluto de imperador sábio. Escolhido como um dos herdeiros futuros pelo varius, multiplex, multiformis Adriano (76 –138, imperador entre 117 e 138) ainda na infância, por revelar qualidades muito promissoras, ele encarna uma cultura que valorizava o âmbito moral e se revia num sistema de virtudes tradicionais, enquadradas com particular facilidade na moral estóica. Marco dedicou muito tempo da sua educação à Filosofia e habituou-se desde muito jovem à análise introspectiva, de que resultou a famosa obra conhecida por Pensamentos, baluarte do estoicismo romano. Marco Aurélio afigura-se um modelo demasiado ambicioso nas presentes circunstâncias, mas é precisamente no capítulo inicial (1,16) do seu livro que, ao evocar as pessoas a quem mais deve a sua formação, ele descreve longamente, como exemplo de vida e liderança, o seu antecessor Antonino Pio  (86 –161, imperador entre 138 e 161). Sintetizando de forma rápida as qualidades de Antonino, centradas no bem-estar do Estado e dos cidadãos, saliento as seguintes:

Era sereno e constante, dava-se bem com todos, não constrangendo a vontade e liberdade de ninguém.

Mostrava-se circunspecto e cumpridor nas funções públicas, comedido e controlado perante as dificuldades.

Era trabalhador incansável, fundamentado e persistente nas decisões.

Não buscava elogios ou aclamações populares, e apreciava com justiça os méritos de cada um.

Não tinha medo de sugestões ou críticas, nem da superioridade de outros.

Fiel ao mos maiorum, satisfazia-se com as coisas simples da vida e procurava impedir a imoralidade à sua volta.

 

Estas qualidades – nos antípodas dos Trumps e outros “crocodilos” do nosso tempo – fazem-nos compreender a imensa e duradoura popularidade deste imperador, que assim deu nome à sua dinastia – considerada a melhor de todas as que governaram Roma – e fez com que Antoninus continuasse a ser reivindicado como cognomen pela dinastia subsequente.

Como era habitual entre as elites romanas desde há séculos, Antonino tinha interesse em ouvir os filósofos, sendo, aliás, como sublinha Marco Aurélio, cauteloso para evitar charlatães. O seu comportamento evoca os conhecidos “mandamentos” estóicos: Ama a verdade e busca a sabedoria; Age com justiça, equidade e bondade para com os outros; Domina os teus medos e sê corajoso; Domina os teus desejos e vive com autodisciplina. Contudo, o imperador não parece ter-se ligado a nenhuma escola, antes praticando princípios consentâneos com a sua natureza serena e com as virtudes romanas tradicionais. É certo que Antonino Pio não necessitava de se preocupar com eleições; mas também sabia que os excessos dos imperadores geravam ressentimentos que desembocavam na sua eliminação física.

Mais ainda, expõem o quão afastado está o mundo tecnológico e sofisticado que a humanidade construiu do que realmente é o Humano: razão, empatia e justiça – Sabedoria – esfumam-se perante a lei do mais forte na nova selva por nós criada.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.