Em Abril de 2005, na homilia da missa prévia à eleição do novo Papa, o então Cardeal Joseph Ratzinger aludia aos perigos da «ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades». Treze anos mais tarde, o jesuíta norte-americano Matthew Malone perguntava num artigo o que poderia ser mais perigoso do que a tal ditadura do relativismo, sobre a qual Bento XVI reflectiu substancialmente durante o seu pontificado e cujo tema foi entrando em diversos espaços de discussão. O jesuíta apresenta o exemplo do primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, cujo governo toma o aborto como um direito humano, silenciando aqueles que no seu partido contrariam esta linha e pondo fim aos apoios às escolas católicas, precisamente por serem confessionais (e contra o aborto).
Há uns anos, este tipo de concepções mais liberais professavam um certo agnosticismo em relação à moralidade de certos temas, na lógica de «cada um faça como quiser»; hoje, há uma promoção activa e positiva (ou seja, legal) do que se tornou ideologia de um certo Estado, imprimindo uma determinada via moral. Assim, Malone considera que mais perigoso do que a ditadura do relativismo é a ditadura do positivismo (da lei, portanto): não se trata, afirma o jesuíta, de não haver uma verdade, mas «a verdade só existe independentemente da fé e é trazida à existência através de uma bruta força legal».
Há uns anos, este tipo de concepções mais liberais professavam um certo agnosticismo em relação à moralidade de certos temas, na lógica de «cada um faça como quiser»; hoje, há uma promoção activa e positiva (ou seja, legal) do que se tornou ideologia de um certo Estado, imprimindo uma determinada via moral
É interessante verificar que o relativismo – tido paradoxalmente como absoluto e inquestionável – era justificado pela necessidade de respeitar a diversidade. Progressivamente, os promotores desta ditadura do relativismo foram, sempre com o discurso da diversidade, levando adiante o seu relativismo. A certa altura, torna-se tão absoluto o meu ponto de vista, tão certo e inquestionável, tão «a minha verdade», que é óbvio que o caminho não pode ser outro senão o meu. E, por isso, o tom manso que é próprio da abertura e da inclusão converteu-se em agressividade e aspereza, de espada numa mão e bandeira da verdade na outra. A verdade que era «uma» ou «a minha» e que agora é «a verdade».
A certa altura, torna-se tão absoluto o meu ponto de vista, tão certo e inquestionável, tão «a minha verdade», que é óbvio que o caminho não pode ser outro senão o meu.
A ditadura pode ser outra, mas o ponto de partida é sempre o mesmo: eu. Eu sou sempre o centro. De facto, se considerarmos que o comunismo se limita àquela representatividade que tem e que não há grandes perspectivas de crescimento, actualmente parece não existir alternativa ao modelo liberal. Seja o liberalismo clássico ou a social-democracia, seja o socialismo europeu vigente ou a democracia-cristã, é sempre dentro deste paradigma liberal que nos movemos. Na política a afirmação do eu é um traço comum – porque é assim entre os homens ocidentais hoje (recordemos os inúmeros livros de auto-ajuda que promovem a adoração do próprio eu: ama-te, tu és a pessoa mais importante da tua vida, e por aí fora).
Abrem-se assim duas janelas de oportunidades para fazer a diferença na política: no que respeita à postura e àquilo que é o centro. E quando digo política não me refiro só ao Parlamento – falo também das conversas que cada um tem com os amigos, do modo como lê uma notícia ou um artigo de opinião.
A postura inovadora é a de fazer pontes. E fazer pontes não é fazer uma salada russa nem tão pouco abdicar daquilo em que acredito só para haver espaço para todos. As diferenças são algo essencial, como aqui já se defendeu. Estabelecer pontes é estar activamente aberto ao diálogo, tentar aproveitar o que o outro traz ao debate e estar disponível para ceder. Fazer pontes não é laxismo; antes implica inteligência para delimitar os temas em que há mais fluida comunicação e entendimento daqueles em que as sensibilidades mais acusam as suas exigências. O que pode não construir pontes? Por exemplo, certamente que não ajuda aquele sarcasmo no início de uma discussão que mata, do outro lado do debate, qualquer boa vontade que pudesse haver de não destruir o adversário. Por isso é que fazer pontes é, antes de mais, uma postura. Assim, nada disto é incompatível com uma boa e estimulante discussão.
Estabelecer pontes é estar activamente aberto ao diálogo, tentar aproveitar o que o outro traz ao debate e estar disponível para ceder. (…) O que pode não construir pontes? Por exemplo, certamente que não ajuda aquele sarcasmo no início de uma discussão que mata, do outro lado do debate, qualquer boa vontade que pudesse haver de não destruir o adversário.
O centro inovador é a comunidade. E é com isto presente que é possível desejar fazer pontes. Isto é mais diferente e inovador do que o que possa parecer. Quando o centro é a comunidade – composta por indivíduos cuja vida é única e inviolável – o mundo não gira em função de vários indivíduos, mas procura o bem que é comum a todos esses indivíduos, ajustando o necessário de acordo com os casos particulares. Uma sociedade “individuocêntrica” não serve nem a comunidade nem os indivíduos – porque se não serve a comunidade não serve cada um dos indivíduos. A promoção da política de família, do associativismo, do desporto, enquanto pertença a grupos ajuda cada um a identificar-se, a encontrar o seu espaço e o seu modo de estar na sociedade, a criar um gosto próprio pelo que é partilhado, a reconhecer a maior alegria que há na vida vivida em comum.
Pessoas encontradas, sendo mais seguras, são, por sua vez, mais abertas e acolhedoras da diversidade. Esta nova atitude e este novo centro são o que de mais inovador, diferenciador e transformador se pode oferecer à política hoje.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.