“Só as casas explicam que exista / uma palavra como intimidade”, escreveu o poeta português Ruy Belo. “Sem casas não haveria ruas / as ruas onde passamos pelos outros / mas passamos principalmente por nós”, continua. “Na casa nasci e hei-de morrer / na casa sofri convivi amei / na casa atravessei as estações”. De facto, no imaginário ocidental, às casas é atribuído este espectro de síntese, enquanto espaço-sumário e lugar-compêndio, domínio fundador e de estabilização da vida, assumida ou reprimida. E, se o cantor Harry Styles – que deu um concerto há meses em Portugal e regressa no próximo ano – anda a fazer um circuito que visa apresentar o recém-lançado álbum Harry´s House, não é despiciente perguntar a que proposta de habitação e a que género de casa ele nos quer convidar.
Em primeiro lugar, o cantor britânico parece sugerir a transição necessária entre a casa enquanto construção e a casa enquanto paisagem. Paisagem que é, acima de tudo, movimento, como referia Maria Gabriela Llansol, citando Galileu, mas, também, “paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto” (F. Pessoa), isto é, lugar rarefeito que se desvanece sob a tensão da gravidade (gravity’s holdin’ me back – As it was).
De facto, no imaginário ocidental, às casas é atribuído este espectro de síntese, enquanto espaço-sumário e lugar-compêndio, domínio fundador e de estabilização da vida, assumida ou reprimida.
Por isso, ao longo das músicas, Harry Styles nunca decifra uma localização geográfica. Ao invés, oferece repositórios cénicos diversos: o restaurante de sushi (Music For a Sushi Restaurant), as conversas noturnas (Late night talking), a tarde solar e o jardim (Grapejuice), o telhado e o avião (Daylight), a caminhada durante o final de um Domingo (Love of my life).
Em certo sentido, tal como o paraíso bíblico, a casa a que Harry Styles se refere é uma casa deixada forçosamente, um dom desperdiçado e não sustentado (your gift is wasted on me – Little Freak), o apelo sem resposta de fundo (ringin´the bell / and nobody´s coming to help – As it was), que direciona a uma recentralização da viagem comum anunciada no recurso à categoria astronómica de satélite (spinning out, waiting for ya / To pull me in – Satellite).
No entanto, é, simultaneamente, desterrada a reconstrução. “Eu quero que estendas a palma da tua mão”, canta o músico britânico no single As it Was, ainda que tivesse anteriormente suspirado em Music for a Sushi Restaurant: If the stars were edible / And our hearts were never full (Se as estrelas fossem comestíveis / e os nossos coração nunca estivessem cheios). Assim, em tempos ainda próximos de múltiplos confinamentos, Harry Styles obriga a orientar o olhar para a vida exterior (Looking for life out there – Datlight), desmitificando o lugar-comum que liga a verdade da vida a uma existência de separação e distância, numa determinada linha incontaminada face ao mundo. Styles esclarece que a casa não é o idílico lugar de conforto, mas o lugar móvel sem teto (No roof on the drive – Cinema), que não sabemos onde descansa (Don’t know whеre you land when you fly – Love of um life), mas que restitui a vitalidade depois da culpa (You don´t have to be sorry – Matilda).
No fim, importa, somente, perguntar como o cantor: Should we just keep driving? (Keep Driving).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.