Durante este ano vivemos a maior disrupção dos sistemas de educação da história, segundo as Nações Unidas. Foram afetados 1,6 mil milhões de estudantes em 190 países, o que equivale a 94% da população estudantil mundial.
Há alguns artigos atrás defendi que se podia utilizar esta mudança radical forçada para tentar repensar mais a educação. Vozes mais relevantes que a minha levantaram-se no mesmo sentido, a ONU, através de António Guterres, pedia especial atenção aos estudantes em situação mais vulnerável e que fosse “aproveitada” a pandemia para se transformar os sistemas educativos através de infra-estruturas digitais, revitalizando a aprendizagem ou usando métodos de ensino mais flexíveis. “Temos uma oportunidade geracional de recriar a educação e o ensino. Podemos dar um salto e avançar para sistemas progressistas que consigam educação de qualidade para todos, como um ‘trampolim’ para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”, disse Guterres.
Mas já temia que pudesse estar a ser demasiado otimista… e agora, olhando em retrospetiva, verifico que tal se confirmou. Com a ameaça da SARS-CoV-2 reforçou-se o “olhar para o chão” em vez do horizonte. É óbvio que passamos de viver para quase sobreviver e com motivo.
Navegamos à vista, que neste caso parecia ser a opção, dada a imprevisibilidade de todo o contexto.
Meio ano passou, continuamos numa situação semelhante, mas a opção com consenso alargado passou a ser a aberturas das escolas:
“Assim que a transmissão local de covid-19 esteja controlada é preciso devolver os alunos às escolas e aos estabelecimentos de ensino de forma segura: esta deve ser uma das prioridades fundamentais”, afirmou Guterres. Para a ONU “é essencial encontrar um equilíbrio entre os riscos para a saúde e os riscos para a educação e proteção das crianças e ter em conta também a repercussão da situação na participação das mulheres na força do trabalho”.
“Apesar de reabrir as escolas não estar a ser fácil, assumimos que mante-las abertas é a prioridade, mesmo que isso implique fechar outros espaços” – Angela Merkel
Para reforçar esta opção, surge o consenso alargado que as crianças são menos vulneráveis ao vírus. No entanto, as abordagens têm variado bastante por país. Aqui ficam alguns exemplos:
Mais alguns exemplos podem ser consultados aqui.
A ciência parece estar a ajudar-nos a ter mais certezas sobre que opções tomar, confirmadas pela consistência das medidas:
Reabertura: Ensino presencial, dado não termos (agora) infraestruturas para outro ensino com resultados igualmente positivos
Máscara: opção simples para proteção de todos, especialmente a partir da adolescência
Diminuição do número de alunos por turma: algo que já tinha resultados positivos do ponto de vista de ensino, traz agora também mais espaço para distanciamento
Divisão de alunos: “bolhas” de alunos para evitar contágios em massa, de modo a que escolas inteiras não tenham que fechar, caso se registem casos numa das bolhas. Isto torna-se eficaz sobretudo quando conjugado com turnos (de chegada à escola, de almoço etc)
Espaços abertos: uso de outros espaços sempre que possível
Mas se as medidas acima parecem relativamente consensuais e estão a ser aplicadas (dentro do possível) em Portugal, há outras menos comuns e preocupantes a serem aplicadas:
Redução dos intervalos: Manter as crianças o maior tempo possível na sala de aula.
Enquanto vários países dão ênfase às aulas ao ar livre, em espaços abertos, em Portugal estamos a optar pelo contrário. Ao mesmo tempo que reduzimos os tempos de intervalo.
Se, por um lado, criar bolhas parece ser, do ponto de vista puramente analítico, uma opção fácil para a redução do contacto entre vários grupos de crianças – ao mesmo tempo que otimiza o tempo para as aulas e ajuda a recuperar o tempo perdido no ano letivo anterior – por outro, esquece o fundamental, ou seja, que estamos a falar de pessoas, mais especificamente, crianças.
Voltar à escola, depois de meses de isolamento, para ter agora um novo isolamento, que podia ser minimizado, é ignorar o óbvio. Como diz o psicólogo Eduardo Sá, não vai correr tudo bem, pois “a forma como as escolas estão a preparar-se para ‘poupar’ inequivocamente nos tempos de recreio, em nome da proteção das crianças, nos volta a trazer uma fórmula do género: ‘recomenda-se que, para sua segurança, as crianças não sejam crianças (nem os adolescentes, adolescentes)’. As consequências físicas, psicológicas, sociais são evidentes.
Já fui crítico do Ministério da Educação em várias ocasiões, e aplaudi outras. É óbvio que a tarefa de organizar esta reabertura do ano letivo é hercúlea pela sua complexidade e imprevisibilidade. É também claro que a reabertura e a maioria das medidas fazem sentido, devem ser aplaudidas, mas este raciocínio onde a criança não é considerada só pode deixar um sabor amargo, porque representa o contrário do que sonho para a educação em Portugal.
Mantemos um sistema de ensino que tende para o estilo de fábrica em série.
Agora assumimos que as crianças podem ser autómatos.
Pelo menos somos consistentes…
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.