O tema das touradas veio de novo à ordem do dia. Desta vez a questão foi despoletada por uma decisão do Governo de não baixar a taxa do IVA de 13% para 6% para as corridas de touros, como o fará para outros espetáculos de carácter cultural. No âmbito da apresentação dessa proposta, a Ministra da Cultura, Graça Fonseca, afirmou que “a tauromaquia não é uma questão de gosto, é uma questão de civilização” e a ela se juntaram outras vozes denunciando o atraso civilizacional que a tourada representa. Estas declarações, como seria de esperar, fizeram exaltar os ânimos nacionais.
Da minha parte, quero deixar claro, desde já, algumas premissas para a leitura deste texto:
- A tourada é um espetáculo de que não gosto particularmente.
- A tourada, não sendo certamente o único, é um espetáculo com uma grande carga de violência, seja no caso da lide a cavalo, com o espetar das farpas no touro, seja no caso da pega, com os forcados a enfrentarem o animal, o que por vezes não termina da melhor maneira.
- A tourada, ao contrário do que muita gente afirma, não é uma tradição nacional. Embora muito arreigada na identidade das (antigas) províncias do Ribatejo, Estremadura e Alentejo, é praticamente irrelevante numa boa parte de Portugal. Se dúvidas restassem, basta percorrer o país para ver que das 81 praças de touros existentes, nenhuma delas se situa na Madeira e, a norte do Mondego, apenas existem seis praças: Figueira da Foz, Póvoa de Varzim, Urrós (Mogadouro), Vinhais, Espinho e Viana do Castelo (as duas últimas já desativadas).
A discussão nacional em torno das touradas levanta questões complexas e, segundo me parece, muito pertinentes, relacionadas com democracia, pluralismo, interioridade e cultura.
No entanto, a discussão nacional em torno das touradas levanta questões complexas e, segundo me parece, muito pertinentes, relacionadas com democracia, pluralismo, interioridade e cultura.
Portugal sofre, há séculos, de uma doença chamada centralismo, também ao nível cultural. Se, por exemplo, em Itália ou em Espanha existem diversos polos de decisão e de produção de cultura – e um certo orgulho na cultura popular e no que é pitoresco – em Portugal, para muita gente, ainda parece mal ter sotaque, e é bronco ser bairrista ou gostar das tradições locais. Para não falar de que, para muita gente, tudo aquilo que cheire a “popular” não é, à partida, coadunável com o conceito de “cultura”.
Se, porém, queremos ser um país democrático e pautado pela diversidade, então temos que levar a sério as consequências. Para uma considerável parte do país as corridas de touros são algo que faz parte do modo de festejar comunitariamente e estão intrinsecamente arreigadas na expressão cultural de vilas, cidades e aldeias (já para não falar de questões de economia local e agricultura). Portanto, no mínimo, deveríamos ir ao encontro dessas pessoas, ouvir as suas razões e tentar compreender por que motivo atribuem grande significado à tauromaquia. Antes de rotular tal prática como atraso cultural, talvez fosse oportuno conhecer para tentar perceber. Aliás, esse poderia ser um trabalho a realizar pelos nossos deputados, muitas vezes eleitos por círculos eleitorais que nem sequer conhecem…
A construção de uma democracia plural é difícil! A história mostra-nos que os caminhos do autoritarismo e da repressão sempre foram muito mais eficientes na aplicação de um determinado modelo de civilidade, com o consequente aumento da violência.
A construção de uma democracia plural é difícil! A história mostra-nos que os caminhos do autoritarismo e da repressão sempre foram muito mais eficientes na aplicação de um determinado modelo de civilidade, com o consequente aumento da violência. O pluralismo, pelo contrário, é um caminho longo, por vezes difícil, em que é preciso sermos capazes de aceitar que não temos a verdade toda, que a nossa conceção de cultura não é a única existente e que o outro – mesmo que com menos instrução que eu – pode ter algo para me ensinar. O pluralismo, que pressupõe a tolerância – sem se ficar por aí –, exige que todas as vozes sejam ouvidas e pressupõe uma elasticidade interior muito grande acompanhada de uma forte capacidade de me pôr no lugar do outro.
Falando em autoritarismo, vêm-me à mente dois acontecimentos caricatos da história. O primeiro, relacionado diretamente com a questão das touradas, foi a promulgação, em 1567, da Bula De Salutis Gregis Dominici, na qual o Papa S. Pio V decretava – com efeitos perpétuos – a excomunhão de quem favorecesse ou participasse em espetáculos de corridas ou lutas com touros e “outras feras”. O segundo foi a chamada “Revolta da Maria da Fonte”, quando um grupo de mulheres do Minho se sublevou contra a proibição de sepultar os mortos dentro das Igrejas, promulgada pelo governo de Costa Cabral em 1844.
No primeiro caso, percebemos que o decreto papal nunca foi recebido por grande parte das “catolicíssimas” gentes da Península Ibérica. Cinco séculos depois, ainda se continuam a associar corridas de touros a festas religiosas e há cristãos que participam, favorecem e assistem a touradas. O segundo caso, é um exemplo da violência causada pelo autoritarismo de quem, desde os gabinetes de Lisboa, decreta o que seja civilização, sem perceber nada do que seja o sentir das pessoas. Creio que ninguém discorda que fosse necessário, por razões de saúde pública, acabar com os enterros nas igrejas. Mas fazê-lo à força, de cima para baixo, apenas gerou revolta popular.
De facto, o autoritarismo coligado com um sentimento de superioridade cultural e civilizacional da parte de uma elite, que simplesmente ignora e olha com desdém para o “interior” ou para o que é “popular”, não pode senão terminar em conflito e rebelião.
De facto, o autoritarismo coligado com um sentimento de superioridade cultural e civilizacional da parte de uma elite, que simplesmente ignora e olha com desdém para o “interior” ou para o que é “popular”, não pode senão terminar em conflito e rebelião. O crescimento do populismo (à direita e à esquerda) nos tempos atuais pode ser disso um sinal. Em Portugal, porém, esta revolta só não será mais expressiva, porque entretanto se conseguiu esvaziar o interior de gente.
Voltando às declarações da Ministra da Cultura, sim, também eu considero que “a tauromaquia não é uma questão de gosto, é uma questão de civilização”. Os gostos, como se costuma dizer, não se discutem. O que seja civilização e cultura, sim, deve discutir-se e debater-se. Numa sociedade que se diga plural e democrática, a cultura há-de ser composta de sensibilidades, gostos, práticas, visões, significados, tradições e costumes muito diversos. Ao mesmo tempo, o que seja considerado “civilizado” e culturalmente aceite ou relevante não é algo estático porque, sendo essencialmente conceitos humanos, podem mudar ao longo dos tempos, segundo aquilo que vai sendo significativo para uma determinada comunidade.
É provável que num futuro mais ou menos próximo a tauromaquia deixe de ser significativa para a maior parte dos portugueses, como já aconteceu com outras tradições. No entanto, decisões sensíveis como a de acabar com as touradas, seriam mais eficazes e menos autoritárias se tomadas a nível das comunidades locais. De facto, seguindo o exemplo já dado por alguns municípios, preferia que essa questão fosse decidida ao nível mais próximo possível do cidadão comum. Ao Estado central e às demais instituições, cívicas e religiosas, competiria a árdua – mas possível – tarefa de fomentar nos seus cidadãos o interesse pelo bem comum e o respeito por cada ser humano, pelos animais e pela “casa comum”, mais com educação e boas práticas de não violência, do que com repressão autoritária disfarçada de avanço civilizacional.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.