Envolvermo-nos na política é uma obrigação. Nós, cristãos, não podemos fazer de Pilatos e lavar as mãos. Não podemos! Devemos envolver-nos na política porque a política é uma das formas mais elevadas de caridade, porque ela procura o bem comum.
(Papa Francisco, audiência de 7 de junho 2013)
É comum dizer-se que o aumento da abstenção reflete o facto de as pessoas se interessarem cada vez menos pela vida política. Os sintomas são óbvios. Por exemplo, nas eleições para a Assembleia Constituinte de 1976, a taxa de abstenção foi inferior a 10%. Subiu para 20-35% nos anos 80-90 e alcançou o valor recorde de 44% em 2015. No entanto, se não formos superficiais na análise perceberemos que cidadãos ativos politicamente não são, necessariamente, cidadãos votantes/eleitores. Os portugueses continuam hoje interessados por política. A sondagem feita pelo jornal Público a 28 de fevereiro de 2017 mostra que a maioria dos cidadãos portugueses se assume interessada por política – embora a dimensão da “política” a que nos referimos seja provavelmente outra que não a partidária. A vivência política já não se reduz aos partidos. Se assumirmos a sua dimensão de intervenção comunitária e social, tornar-se-á evidente para onde está a ser canalizada a intervenção política de grande parte da população. São mais os movimentos comunitários informais do que os próprios partidos. Bons exemplos disso são os Leigos para o Desenvolvimento, a Missão País, ou as brigadas noturnas da Comunidade Vida e Paz.
A origem deste esvaziamento político-partidário está na crescente desconexão entre partidos e cidadãos. Mantendo-se as velhas lógicas internas, que com a nova sociedade da informação ficam crescentemente expostas, as pessoas tendem a afastar-se. Refiro-me, por exemplo, à valorização do carreirismo partidário em vez do mérito individual. Ou, ainda, à marginalização daqueles que desafiam a prática do seguidismo das estruturas centrais. O mundo mudou, mas os partidos políticos permanecem os mesmos, seguindo os mesmos hábitos de há décadas e fechando-se em si mesmos.
Neste contexto, que responsabilidade temos nós enquanto Igreja viva? A resposta imediata será que, sendo Portugal um Estado laico, a Igreja Católica não deve interferir diretamente nos assuntos do Estado/Governo. Deve, sim, afirmar-se enquanto modelo exemplar a seguir. Mas, será que Igreja é tão diferente dos partidos políticos, nos jogos de poder dos seus líderes, na falta de transparência, na ostracização das formas diferentes de pensar e na resistência à mudança?
Na primeira epístola daquele que consideramos ser o primeiro Papa, São Pedro exorta os cristãos, especialmente os presbíteros, a proporem bons exemplos de conduta em vez de se apropriarem do poder. (cf. 1 Pe, 5, 1-3). Também o Decreto 3º da 35ª Congregação Geral dos Jesuítas discute “Os desafios para a nossa missão, hoje”, exortando os padres jesuítas a focar o seu serviço nas “fronteiras”. Diz-se aí que nós, os leigos, temos o dever de intervir, participar e ser testemunho de Deus nessas fronteiras, sejam elas campos de refugiados ou partidos políticos. Deveremos estar onde mais escasseia o amor. E, quanto mais a luz e o amor faltarem, mais difícil será o desafio. Tal como nos desafia o Papa Francisco, o que não podemos é ficar parados, de braços cruzados, assistindo a um mundo em constante mudança em que o racismo, a exclusão, a discriminação e a mentira parecem estar a tornar-se “normais” e até “aceitáveis”.
Enquanto católicos podemos e devemos desempenhar um papel na elevação da vida partidária, trazendo os valores do espírito de serviço desinteressado, do amor ao próximo e da liderança pelo exemplo para a vida pública. Isso só depende de cada um de nós. Não há dúvida de que a manutenção dos valores certos e de um sentido crítico aguçado tornam-se verdadeiros desafios quando entramos na vida dos partidos. Nos princípios mais difíceis de suster eu incluiria a humildade, a verdade e a defesa da liberdade. Todos eles são produtos de uma vida em amor.
Vivemos na época da chamada “Pós-Verdade”, made in USA, em que os factos objetivos parecem ser menos influentes na formação da opinião pública do que emoções e crenças pessoais. Agostinho da Silva, Filósofo Português, referiu a propósito do perigo das convicções pessoais inquestionáveis:
Deve-se estar atento às ideias novas que vêm dos outros. Nunca julgar que aquilo em que se acredita é efetivamente a verdade. Fujo da verdade como tudo, porque acho que quem tem a verdade num bolso tem sempre uma inquisição do outro lado pronta para atacar alguém.
Assim, diria que não devemos cair na tentação de nos escondermos por detrás de verdades absolutas e inquestionáveis. Verdades essas que por vezes não passam de dogmas teológicos que não compreendemos ou com as quais, muitas vezes, nem sequer concordamos. É muito mais fácil viver a reboque dos pensamentos dos outros. Difícil é ter a ousadia de questionar como Jesus questionou. A pior coisa que pode acontecer é aprendermos e construirmos opiniões mais sólidas, equilibradas e sensatas. Na parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37), por exemplo, Jesus põe em causa certas práticas religiosas instituídas na sua época: o sacerdote não podia tocar em sangue antes de ir ao templo e, por isso, não pode praticar a caridade e a compaixão que moveu o bom samaritano, deixando o próximo só, quase morto, pelo caminho. Com isto mostra-se como Jesus pôs certos hábitos rituais e religiosos em questão.
Situações como a polarização de posições em reação às declarações do Cardeal Patriarca de Lisboa sobre a abstinência sexual por parte dos recasados são preocupantes. O problema reside no facto de, como referiu João Miguel Tavares, no seu artigo “A Igreja Católica e os seus (maus) defensores”, recentemente publicado no jornal Público, haver leigos que parecem ser mais “fundamentalistas” do que os próprios líderes da Igreja. Neste caso, defensores “cegos” defenderam apaixonadamente uma posição cujo próprio autor veio, dias depois, retratar. Por outro lado, são estes os nossos irmãos que insinuam constantemente a heresia do Papa. Caso para dizer que “são mais papistas do que o Papa”. Esta vivência dogmática da fé, fundamentalista e cega faz lembrar a paixão ideológica dos militantes partidários na sua forma menos elevada e não contribui para fazer da Igreja um espaço de consensos e de consolidação da vida em comunidade pela sua abertura e inclusão.
Deus ama-nos tal como somos, nas nossas qualidades e defeitos e também na nossa diversidade. Portanto, agora que somos chamados a ser politicamente mais ativos, acredito vivamente que as particularidades de cada um de nós, que nos tornam únicos, são riquezas. Assim, para que enquanto católicos sejamos mais politicamente ativos, temos, antes de mais, de ser livres. Ser bom católico não é fazer parte de um espectro político limitado. Ser bom católico é, em qualquer dos espectros políticos em que falte o amor, a verdade, a humildade e a liberdade, ser essa mudança.
Muitos acusam os colégios católicos de procederem a “lavagens cerebrais” no que respeita às posições políticas dos seus alunos, fazendo com que a sua maioria se alinhe num espectro político de direita. Eu não poderia estar mais em desacordo. Felizmente, das coisas mais importantes que trago enquanto ex-aluno de um colégio jesuíta, além de uma educação que fez de mim um privilegiado, são os valores do amor a Deus e do amor ao próximo. Desenganem-se, portanto, os que acham que somos todos iguais ou formatados na educação. Não somos! E eu talvez seja uma prova viva disso pois desempenho as minhas responsabilidades de intervenção política, enquanto católico orgulhoso e assumido, no Governo da “Geringonça”. E qual é o problema?
O exercício de funções de liderança, mais do que um exercício político de poder, é um exercício de grande responsabilidade. Neste contexto, não existem partidos nem governos perfeitos e irrepreensíveis. Como Jesus nos ensinou, é sempre possível amar mais. É sempre possível servir mais. Na minha opinião, o maior desafio é, com humildade, tomar consciência dessa nossa incapacidade de nos entregarmos totalmente, mas sem nunca perder a vontade incansável de ser melhor e de fazer melhor.
A paciência tudo alcança, quem a Deus tem nada lhe falta. No desempenho das minhas funções no Ministério da Saúde não raras vezes dou por mim a questionar-me e a pensar: eu faria diferente! Mas é precisamente nessas alturas que devemos empenhar-nos ainda mais para escutar e ter compaixão. E quando nem mesmo isso apazigua o espírito, poderá ser sinal de que, à imagem da atitude de Cristo nas bodas de Canã, talvez tenhamos de aceitar, com humildade, que ainda não chegou o nosso tempo.
O serviço à comunidade apenas faz sentido quando feito em liberdade. E a indiferença inaciana torna-nos, sem dúvida, mais livres. Livres para dizer “não concordo” a quem mais ninguém ousa contrariar. Livres para defender a verdade mesmo quando isso puder colocar o status quo em questão. Livres para sair, quando isso tiver mais de amor ao próximo do que ficar.
A verdade é que nenhum partido político é, atualmente, perfeito. De uma forma ou de outra, todos descriminam, todos julgam, todos excluem, e todos se esquecem de qual a sua verdadeira missão: a defesa dos cidadãos. É por isso que, em todos esses lugares, um Católico poderá sempre fazer a diferença.
“Ide por todo o mundo, anunciai a Boa Nova a toda criatura” (Mc, 16, 15).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.