Bom, mau ou depende?

A vacina para esta epidemia já existe. Chama-se literacia mediática. Deve ser ministrada em doses generosas desde cedo, em casa e na escola.

Depende” é uma resposta que se pode dar a quase qualquer pergunta. Até para responder à aparentemente simples questão sobre o ano em que cada um de nós nasceu. Depende. Usamos como referência o calendário gregoriano, o islâmico, o chinês ou o judeu?

Já estará o leitor a pensar numa série de exemplos incompatíveis com a primeira afirmação deste texto. Isto se não desistiu de o ler depois dessa polémica afirmação. Mas o exercício é divertido se for tomado como um jogo em que tentamos encontrar a forma de a resposta depender de alguma variável.

Não se está a aqui a querer complicar o que é simples. Apenas ilustrar como a capacidade de perceber que qualquer ponto de vista é apenas a vista a partir de um ponto. Isto faz muito sentido num mundo e num tempo onde as atitudes extremadas e a polarização de opiniões (polarização de tudo, na verdade, mas isso seria tema para outra crónica) dominam o espaço público.

Vem esta introdução a propósito do tempo de sindemia em que vivemos. Sindemia é um termo desenvolvido por Merril Singer nos anos 90 e que se refere a epidemias complexas que implicam dois tipos de interações adversas. O autor refere-se especificamente à interação entre doenças e fatores sociais ou ambientais. Nesta era COVID, à pandemia declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em março, associou-se uma outra epidemia também já diagnosticada como problemática pela OMS e que, pelos perigos que acarreta, é urgente combater – a infodemia. Trata-se simplesmente de um fenómeno que todos verificámos e de todos padecemos: um enorme aumento do volume de informações associadas a um assunto específico, que podem multiplicar-se exponencialmente em pouco tempo. A infodemia é responsável por rumores e desinformação, para além da manipulação de informações com intenção duvidosa. No contexto sindémico, a era COVID surge num momento em que a sociedade é regida pela informação e pelas redes. Uma verdadeira Idade Média. Uma Era em que a produção e o consumo dos media são, também eles, completamente polarizados. Os media veiculam a informação essencial e a desinformação indesejada; as leituras são ora fragmentadas, ora densas e complexas; o jornalismo de excelência disputa a atenção com a comunicação de sarjeta. Com a amplificação sem precedentes possibilitada pelas redes sociais, está montado o terreno perfeito para a proliferação da infodemia.

Contamos com os media para saber a atualização diários dos números da pandemia, para conhecer as políticas de combate, para divulgar as medidas de prevenção e de combate ao vírus, para descobrir se no próximo fim de semana podemos circular entre concelhos, para conhecer os horários do comércio, para nos inteirarmos sobre onde e como vão ser administradas as vacinas. É o serviço público de comunicação em todo o seu esplendor a ser posto em prática por todos os órgãos de comunicação social. A par dessa essencial tarefa, os media dão tempo de antena aos médicos pela verdade, aos jornalistas pela verdade, aos negacionistas do vírus, aos apavorados pelo vírus, aos que insultam os profissionais de saúde que combatem a pandemia. Tudo circula. E a ignorância de uns parece valer tanto como o conhecimento de outros. As mesmas câmaras que ecoam disparates que chegam para uma antologia em vários volumes direcionam os utilizadores para fontes fidedignas de informação e alertam para a necessidade de confirmar dados que elas próprias disseminam.

A vacina para esta epidemia já existe. Chama-se literacia mediática. Deve ser ministrada em doses generosas desde cedo, em casa e na escola. Porque usar a informação (e da tecnologia) em nosso benefício não depende da sua bondade ou malignidade mas sim da nossa capacidade de a avaliar e questionar (inclusivamente encarar como uma realidade insofismável os filtros das nossas bolhas de informação). É fácil? Não. Mas depende, em primeiro lugar, da nossa consciência da questão.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.