Azul – perder-me na esperança

Um texto imerso na cor nova da esperança. Aqui, o azul torna-se metáfora de Deus: presença e ausência, plenitude e vazio. Como a vida, como a fé.

 

Escrito por ocasião do Fé e Cultura 2025, que aconteceu no passado dia 5 de abril em Coimbra, este é um texto uno, escrito em 4 atos. Um texto denunciador dos Sinais dos Tempos, imerso na cor nova da esperança. Um sinal feito de palavras, um rasto de cor no horizonte. Aqui, o azul torna-se metáfora de Deus: presença e ausência, plenitude e vazio. Como a vida, como a fé. No percurso, o azul invade tudo, ilumina, dá sentido. Procura-se esse azul na realidade que nos rodeia. No quotidiano, nas pequenas coisas, até nos cenários mais duros e contraditórios. Mas nem sempre se encontra. Há momentos em que a cor se dilui, em que a escuridão parece vencer. Quando o azul se esconde, quando a realidade se torna demasiado crua, instala-se o desespero. A ausência pesa mais do que a memória da presença. E, no entanto, não nos podemos perder na ausência, mas na espera. Não na falta, mas na confiança. Entregarmo-nos ao abandono em Deus – mesmo quando o azul parece distante. Este é o desafio da esperança: reconhecer os sinais, mesmo na escuridão. Descobrir que, mesmo quando oculto, o azul nunca deixa de existir.

 

I.

Não sei exatamente quando é que surgiu. Aos poucos, começou a aparecer, a preencher o horizonte, a ocupar-me o pensamento, a habitar o meu corpo e a assaltar-me o inconsciente. Primeiro, um traço azul leve gravado na manhã. Surgiu envergonhado, calado, ainda numa tonalidade desbotada, queimado pela luz. Ou talvez fosse eu que estivesse cego. Uma pequena impressão no canto do olho, uma sombra no campo de visão que se dissipava ao fechar as pálpebras. Ignorei-o por muito tempo. Fechei-lhe o coração. Mas o lápis que o desenhava tornou-se mais forte e o traço claro libertou-se das linhas que o prendiam ao papel. Uma penumbra azul espalhou-se como fumo, como a neblina que traz a alvorada. Perseguiu-me como a sombra dos meus passos e atravessou-me a carne, penetrou nos meus ossos, inundou-me as veias e rebentou o meu peito. O meu corpo pairava no ar, em direção ao azul de infinito.

 

II.

Passei a vê-lo em todo o lado. Nos sinais de trânsito da cidade e nas setas do caminho, nos grandes placares ao longo da estrada e nas luzes néon das lojas da rua. Como alertas de algo que estava para vir, anunciados a letras garrafais. Vi-o nas televisões e naqueles anúncios ruidosos. O do carro que não podíamos deixar de ter para ser felizes ou o do shampoo para conquistar todas as miúdas. No equipamento novo dos jogadores de futebol, seguidos pelo olhar apaixonado ou furioso dos milhares de adeptos. Na gravata engomada do senhor ministro que discursava ao país, no início do telejornal e no fato do homem de negócios, que esboçava sorrisos e distribuía apertos de mão. Depois, vi-o no bolso do casaco do pai e no cachecol de crochet que a mãe fazia sentada na poltrona, nas incontáveis camisas, calças e camisolas abandonadas no roupeiro, quase por estrear e nas sapatilhas sujas que teimava em usar até gastar a sola. Nos reflexos do cabelo grisalho da avó e no manto celeste da Nossa Senhora de porcelana, que já não tinha uma mão. Ou num tom mais escuro, como na pavlova de mirtilos que detestava e na pasta de dentes que sabia tal e qual. Nos espelhos de água que se formavam na calçada em xadrez, depois da chuvada, e que nas ruas molhadas refletiam a cara escondida dos mendigos quando eu desviava o olhar e apressava o passo. No fumo quente das bombas, que rebentavam como espuma na areia e engoliam os filhos daquelas mães. Nos gritos de dor do mundo, e no grito de um bebé, no primeiro suspiro de vida. No coração ferido daqueles que magoara e traíra. Faca de dois gumes que me rasgava as veias e me lembrava que o meu sangue, esse, afinal, não era azul. Na tristeza que me corria pela face, deixando um rasto de sal. E no céu, que acordava pintado de um azul sem forma ou dimensão, recortado pela sombra das montanhas e dos vales, por onde sulcavam os rios que desaguavam nos teus olhos de mar.

 

III.

Submergi nessa onda azul, como a gigantesca de Hokusai. Guardei memórias pintadas de lápis lazúli, índigo, turquesa e celeste. Mas o vento levantou e agitou as velas. O céu que era azul cobriu-se de cinza e o gelo petrificou-me por dentro. Num sopro corrido, tentava
devolver à viagem os seus tons, a sua canção de embalar, sobre as notas da lua azul. À tona das águas, escuras de vinho negro, as ondas de preocupações em manter-te à vista, em agarrar-te, em impedir que desaparecesses dissolvido nas nuvens. A chuva espessa levou-te para longe e só sobraram as trevas sem cor. Está tudo acabado, meu pequeno azul. O céu está a cair-me em cima, mas apenas sinto o calor das cinzas. Um marinheiro sem o seu mar é apenas um vagabundo. Pinto a cara de azul, como Pierrot e preparo o inevitável. Não sei se foste tu que partiste ou eu que não me parti. Submerso nesta outra onda, perdido na cegueira de não te encontrar. No desespero de deixar de acreditar que continuavas aí depois da escuridão da noite.

 

IV.

Moves-te como uma brisa
e onde paras, tens o meu olhar.
Sê a minha âncora e a minha vela.
O berço e o ventre de mãe.
A estrela do Norte e a calma do luar.
Então, talvez sejas o pássaro azul
que dilacera a escuridão dos meus dias.
O canto da ave que anuncia a nova manhã.
A pequena luz que deixei de reconhecer.
Talvez sejas a gota de água
que pinta as linhas do meu rosto
quando não te vejo.
O abandonar-me na incerteza dos dias.
Perdido em alto mar até me encontrares.
Sê o meu caminho, a minha luz e escuridão,
perdido na confiança do esperar.
Leva-me de volta.
Porque sei que não estou longe
e ouço-te dizer
que a estrada continua para algum lugar.
Acende o fósforo,
ainda no dia da tristeza.
Faz-me habitar este mundo sem amor,
Perdendo-me em ti
Ainda que leves o azul nas tuas asas.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.