É difícil descrever a sensação que nos domina quando alguém que amamos ou admiramos nos revela a sua face escondida, o lado escuro da sua pessoa e, assim, nos desilude ao desfazer a imagem que até então tínhamos dele. Creio que todo o mundo católico sente hoje uma mistura entre o choque e a decepção profunda – tristeza talvez com raiva habitam os nossos corações – assim que nos chegam as informações acerca da conduta de Jean Vanier. Não só o mundo católico, mas todas as pessoas de bem, incluindo aqueles que não se sentem dignos de atirar a primeira pedra, podem hoje (legitimamente) perguntar: “Até tu, qual ícone do bom samaritano, terás abusado sexualmente de pelo menos seis mulheres, tão adultas quanto vulneráveis?…”
No sábado passado, os atuais dirigentes de L’Arche, federação dedicada à assistência de portadores de deficiência, confirmaram esta informação. Num ato de enorme transparência, Stephan Posner e Stacy Cates Carneye divulgaram o resultado final de um inquérito sobre o fundador da instituição que agora dirigem. Concluíram que, pelo menos entre 1970 e 2005, Jean Vanier terá utilizado o “serviço” de direção espiritual “prestado” a tais mulheres para abusar delas…
Ora, nem sequer foi há um ano que Jean Vanier partiu deste mundo. E, por ocasião do seu funeral, a 16 de Maio de 2019, Pierre d’Ornellas, Arcebispo de Rennes, aproveitou a homilia para partilhar tanto a tristeza relativa às obséquias de um homem com auréola de santo, como a alegria pela obra que ele construíra e nos deixara como herança. Os seus sentimentos de hoje devem contrastar fortemente com os desse dia, pois aquele cuja vida seria a consumação exemplar do lava-pés do Evangelho revela-nos agora o lado mais negro da sua pessoa. Provavelmente hoje, a tristeza que sentimos refere-se menos à sua partida do que à sua pessoa.
É difícil acreditar, mas as vítimas, que ousaram não sem coragem denunciar, devem agora ser ouvidas, compreendidas e acompanhadas. Já sabíamos que o diretor espiritual de Jean Vanier, o dominicano Thomas Philippe, tinha perpetrado o mesmo tipo de abuso sobre várias mulheres que ingressaram numa comunidade religiosa, procurando de boa fé responder ao apelo de Deus. E, se não bastasse o abuso em si, também soubemos que o P. Thomas Philippe, tal como o seu irmão, aliás, justificava às próprias vítimas tais atos como expressão de uma (pseudo)-mística.
E, agora, descobrimos que o fundador de L’Arche empregou o mesmo género de palavras (falsamente) espirituais com o intuito de manipular pessoas de certa forma vulneráveis. Ou seja: não só ele conhecia, pelo menos desde os anos cinquenta, a faceta de predador sexual do P. Thomas Philippe, como também praticava a mesma perversidade. Escandaliza o exercício de poder com o intuito de satisfazer os interesses mais egoístas e os desejos mais primários, sobretudo quando estamos perante um instrumento que existe para servir a relação com Deus. De facto, ao que parece, a bricolagem teológica perversa do P. Thomas Philippe escondia-se num grupo fechado e bastante restrito de pessoas, ao qual pertencia Jean Vanier. Sabendo nós, através do ensinamento dos verdadeiros mestres espirituais, que nestes casos o segredo é sinal de “mau espírito”, torna-se impossível de olhar para Jean Vanier como um ícone da ternura e do verdadeiro amor de Cristo. Até mesmo Stephan Posner assume, sem papas na língua, que o fundador de L’Arche, para além de ter abusado, mentiu quando fora confrontado com uma denúncia contra ele próprio e quando se tornaram públicas as condenações relativas à conduta do seu mentor espiritual.
A transparência que o responsável internacional de L’Arche manifesta nesta entrevista é louvável. Creio que é mesmo um exemplo a seguir pelas várias instituições que compõem a Igreja e nas quais os membros do Corpo de Cristo exercem toda e qualquer forma de poder.
Convém reconhecer que a L’Arche atual não só pediu a um organismo completamente exterior e imparcial para dirigir a investigação, como tornou imediatamente públicas as conclusões finais, em total transparência, mesmo apesar da dor e do luto que um tal processo implica. Além disso, estão ainda a analisar, com organismos independentes, que medidas devem tomar para que estas situações sejam, na medida do possível, evitadas, e para que as vítimas possam ser protegidas. Esta transparência é fundamental: permitir a instâncias externas o escrutínio dos seus dirigentes, das suas decisões, do seu funcionamento, será essencial para que a Igreja possa recuperar a credibilidade perdida e anunciar mais genuinamente o Evangelho de Jesus.
Além disso, este triste acontecimento alerta-nos também para os perigos próprios do poder, em geral, e da direção espiritual, em particular. Se a Igreja nos impede de canonizar uma pessoa em vida, é porque a sabedoria da sua Tradição reconhece a fragilidade e os limites de todos. Quer seja um fundador de uma instituição louvável, quer seja apenas um bom diretor espiritual, é perigoso elevar uma pessoa a um pedestal de perfeição quase divina. Idolatrá-lo ou incensá-lo desmesuradamente pode fazer-lhe mal, a ele e à comunidade que o acolhe. Ninguém entre nós é Jesus ou Maria. E, se todos somos pecadores, deve ser possível que tudo o que dissermos ou sugerirmos, mesmo às pessoas que nos são confiadas, possa ser confrontado e posto em causa. Só, assim, podem ser evitados os abusos que destroem a nossa credibilidade enquanto Igreja e que tantas vítimas deixaram por cuidar.
Por último, mesmo perante a tristeza e a revolta que possamos sentir neste momento, devemos esforçar-nos por não deitar tudo a perder. Tentemos agora não queimar tudo: o trigo e o joio ao mesmo tempo. Desde a sua fundação em 1964, L’Arche, através das pessoas que dão a vida por este projeto, tem feito muito bem a muita gente. Com cerca de 150 comunidades espalhadas por quase 40 países, este organismo sem fins lucrativos cuida de pessoas com deficiência e em situação de vulnerabilidade. Continua, apesar de tudo, a ser uma forma de expressar o Evangelho, através do amor em prática pelos mais pequenos dos nossos irmãos e irmãs. Ao sentir repulsa pelo mal que agora descobrimos, sejamos capazes de ter o discernimento para não destruir todo o bem que a obra de Vanier fez nascer.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.